Filosofia da práxis
Nicola Badaloni
O conceito de
“práxis”, como agir individual e social, está no centro de toda a filosofia
inaugurada por Karl Marx e pelo seu modo de abordar os problemas da produção e
da ciência. Nos chamados Manuscritos econômico-filosóficos de 1844,
que Gramsci não teve a possibilidade de conhecer, Marx escrevia: “Assim como a
sociedade produz o homem enquanto homem, ela é produzida por ele”. Essa idéia
de que a “produção” ou “práxis humana” engloba não apenas o trabalho, mas também
todas as atividades que se objetivam em relações sociais, instituições,
carecimentos, ciência, arte, etc., atravessa todo o pensamento de Marx e
constitui o seu princípio fundamental.
Antonio Labriola desenvolveu este aspecto,
afirmando — num de seus ensaios sobre A concepção materialista da história — que o materialismo histórico “parte
da práxis, ou seja, do desenvolvimento da operosidade; e, como é teoria do
homem que trabalha, considera a própria ciência como um trabalho”. Para
Labriola, “todo ato de pensamento é um esforço, ou seja, um novo trabalho”, ao
passo que “o trabalho realizado, ou seja, o pensamento produzido, facilita os
novos esforços voltados para a produção de um novo pensamento”.
Esta premissa serve para demonstrar que o
termo “filosofia da práxis”, do qual fala Gramsci, não é um expediente
lingüístico, mas uma concepção que ele assimila como unidade entre teoria e
prática. Discutindo sobre a undécima tese de Marx, que propõe mudar o mundo e
não mais interpretá-lo, Gramsci escreve nos Cadernos que essa tese “não pode ser
interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia”, mas
como “enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática. [...] Deduz-se
daí, também, que o caráter da filosofia da práxis é sobretudo o de ser uma
concepção de massa”. E, em outro local, repete: “Para a filosofia da práxis, o
ser não pode ser separado do pensamento, o homem da natureza, a atividade da
matéria, o sujeito do objeto; se essa separação for feita, cai-se numa das
muitas formas de religião ou na abstração sem sentido”.
A unidade de teoria e de prática serve a
Gramsci para delinear uma série de conceitos científicos capazes de interpretar
o mundo que lhe era contemporâneo (hegemonia, bloco histórico, novo senso
comum, conformismo de massa em sua ligação com novas formas de liberdade
individuais e coletivas, revolução passiva, etc.).
Aqui, numa formulação geral, iremos nos
limitar às seguintes considerações sobre a filosofia da práxis:
1) Nem a filosofia da práxis nem nenhuma
ciência a ela ligada nos permitem fazer previsões que tenham caráter
determinista. Há um único modo possível de prever: aquele que vê a previsão
como um ato prático que implica a formação e a organização de uma vontade
coletiva. Desta tese, Gramsci deduz sua crítica a Croce, na medida em que a
religião crociana da liberdade não contribui para a criação de resultados
previsíveis, já que evita formular um projeto de transformação e uma vontade
política correspondente a tal projeto. Essa mesma teoria da “previsão” põe em
crise as concepções deterministas típicas do cientificismo da Segunda
Internacional, que são também fonte de passividade.
2) A vontade de que fala Gramsci (e, portanto,
a práxis) não é algo em estado puro, mas contém os elementos materiais que o
próprio homem objetivou. Isso significa, em primeiro lugar, que a filosofia da
práxis é, para Gramsci, a consciência plena das contradições da sociedade que
lhe era contemporânea, de modo que — como ele diz nos Cadernos — “o próprio filósofo, entendido
individualmente ou como todo um grupo social, não só compreende as
contradições, mas põe a si mesmo como elemento da contradição, eleva este
elemento a princípio de conhecimento e, portanto, de ação”.
Ciências do homem (distintas entre si) e
também ciências da natureza, para além da sua independência recíproca,
encontram um momento de unidade, ao se tornarem política. Gramsci sintetiza
isso nos seguintes termos: “A filosofia da práxis é o ´historicismo absoluto`,
a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da
história”. Para entender esta última afirmação, o leitor deverá recordar a tese
acima mencionada sobre a verdade como correspondência a uma realidade
objetivada pelo próprio homem.
3) Gramsci define “o homem como uma série de relações
ativas (um processo)”, de modo que ele “não entra em relação com a natureza
simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do
trabalho e da técnica”. Em outras palavras, todo indivíduo “não só é a síntese
das relações existentes, mas também da história dessas relações, ou seja, é o
resumo de todo o passado”. Como é possível mudar o mundo se o indivíduo depende
de tal modo do seu passado? A resposta de Gramsci é que “o indivíduo pode se
associar com todos os que querem a mesma mudança; e, se essa mudança for
racional, o indivíduo [...] pode obter uma mudança bem mais radical do que
aquela que, à primeira vista, pode parecer possível”.
Concluindo, a filosofia da práxis é, para
Gramsci, construção de vontades coletivas correspondentes às necessidades que
emergem das forças produtivas objetivadas ou em processo de objetivação, bem
como da contradição entre estas forças e o grau de cultura e de civilização
expresso pelas relações sociais. Está implícita nela, que aparece como uma
concepção filosófica, uma série de ciências da natureza e do homem. Tomadas
isoladamente, tais ciências podem ser consideradas como independentes;
consideradas como expressão da possível contradição entre atividades criativas
e relações comunicativas de tipo social, passam a fazer parte da filosofia da
práxis e, desse modo, podem influir sobre a política, isto é, sobre aquelas
mudanças que nos fazem entrever um novo modo de viver e níveis superiores de
civilização.
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