UM TEXTO DA PROFESSORA ÂNGELA LINHARES - UFC SOBRE SAÚDE E EDUCAÇÃO POPULAR.




Itinerários para uma reflexão sobre saúde no contexto da educação popular

Pensar aspectos fundamentais sobre saúde no contexto da educação popular requer que nos situemos, a nós educadores, como sujeitos ante outros sujeitos que se educam no percurso de transformação social escolhido. Aqui, desde já, vemos que fundamentalmente estamos diante de relações entre sujeitos, caminhos de transformação que são educativos e direção do percurso em comum a ser trilhado.
Ora, quando pensamos em caminhos de transformação social é que estamos partindo da idéia de que há mudanças na vida pessoal e coletiva a serem feitas. E também estamos tendo clareza de perceber que estas mudanças acontecem com sujeitos históricos que, por sua vez, modificam os processos sociais onde estão situados.
Na verdade, educa-se os seres humanos porque eles são inacabados: há uma direção e um caminho que se pensa trilhar para humanizar a vida e o ambiente coletivo. No caso de uma sociedade com grandes desigualdades sociais, a transformação deve envolver mudanças no quadro de pobreza e exclusão, mas, também, mudanças na estrutura social. Por exemplo: lutar contra a miséria é importante em qualquer âmbito, mas conseguir que o país possa garantir, como política pública, medicamentos para AIDS no Sistema Único de Saúde (SUS) é algo que incide diretamente na situação de desigualdade social e a transforma.
No caso da experiência das Cirandas da Vida, por exemplo, que envolve saúde e educação popular (vivenciada na prefeitura do Partido dos Trabalhadores), trabalhamos com a população da periferia a partir da identificação das situações-limite, que são situações que exigem transformação. Depois de identificadas estas situações-limite, são feitas oficinas temáticas, onde se aprofunda como se construiu aquela realidade historicamente e como se pode atuar na direção de mudá-la. Tenta-se identificar grupos – atores sociais- que são parceiros e partícipes nessa transformação e, então, se começa a realizar os enfrentamentos: diálogos que se encaminham para reivindicações mais e mais concretas e conseqüentes. Roda de gestores e roda de grupos populares se encontram e, apesar das especificidades de suas tarefas sociais, fazem também uma roda única onde o princípio de comunidade e a esfera institucional dialogam.   
É importante ressaltar que, neste caminho de transformações, os saberes são construídos na relação da população com os profissionais da saúde (que estão a atuar com a dimensão educativa da sua profissão).
Na verdade, estamos a dizer, inicialmente, que é preciso se ter uma direção para nossa ação e reflexão – e que o percurso dialógico que seguimos é um percurso de produção de sentidos para a luta social, portanto, de transformação da exclusão e, também, das estruturas que a mantêm.
Pode-se dizer, desde logo, que no modelo de uma medicina social que pensa educação em saúde coletiva, o sujeito que educa também está a se educar na relação que se instaura entre eles. Vale aqui sublinhar que é tão importante os processos de entendimento e produção de saberes que vamos tecendo quanto o produto destas interações - o que a gente tem pensado como “resultado” desse caminho.

Quem são os sujeitos sociais de que estamos falando?

Estamos a considerar um novo modelo de sujeito das práticas sociais com a saúde: um sujeito multidimensional, que tem as dimensões desejantes (a ética-moral, a artística, a afetiva, a intuitiva, a espiritual), a organísmica e a cognitiva. Um sujeito que vivencia numa cultura padrões de cuidado: consigo, com o Outro e com o ambiente. Quando falamos, portanto, da vida como o lugar do cuidado, nos referimos à vida como um todo – onde a saúde e a doença são vivências da condição humana, dotadas de significados particulares para os sujeitos que a experimentam.   
Naturalmente, estamos em uma mudança de paradigmas, que são as referências fundantes da ciência de um novo tempo histórico. E, como diz Boaventura Santos, a partir de agora, todo paradigma da ciência deve ser também um paradigma social e ético. Se, por exemplo, a medicina centrava-se em um modelo bio-médico, ao trabalhar a dimensão educativa da saúde, o profissional vai lidar com a esfera educativa de sua ação e, portanto, a medicina social que ele passa a fazer o leva a funcionar dentro de outros marcos de referência. Nesse marco, não podemos simplesmente “aplicar” nossas receitas para condutas sociais – temos de nos situar como sujeitos ante sujeitos, que fazem sua história social e podem tecer redes sociais e caminhos de transformação da saúde coletiva.
        
Os movimentos sociais: esse ator coletivo 

Seguindo um pouco as reflexões de Melucci, ínsitas no livro de Glória Gohn, intitulado “Teoria dos Movimentos Sociais”, publicação das Edições Loyola, São Paulo, 1997, temos que os novos movimentos sociais podem ser tomados também como categoria analítica - referência para pensarmos as situações de luta coletiva hoje. Formas de ação coletiva que se tecem como uma rede complexa de solidariedades e lutas sociais, rupturas e produção de sentidos novos para o caminhar das gentes, os movimentos sociais lidam permanentemente com organização de pessoas, tendo em vista mudanças sociais e, para isso, realizam transformações subjetivas e objetivas nesse percurso. O princípio de comunidade, essa esfera do mundo de vida, se enfrenta com a esfera institucional e estatal, na intenção de ampliar os direitos sociais e alargar as políticas públicas na direção de mudanças estruturais a cada vez mais profundas.
Pensar em educação popular em saúde, nessa perspectiva, é se colocar do ponto de vista popular para fazer da saúde um direito que se efetiva nas práticas sociais.
O caminho da organização e da luta popular, portanto, é onde tecemos nossas relações com a população. Assim é que na luta das classes populares por seus direitos sociais, não se pode esquecer que o conjunto de idéias, o mundo de representações e saberes que os movimentos sociais lidam possuem movimento e, na prática conjunta é que se vai tecendo esse pensamento e esse sentimento do mundo.
Buscar os sentidos que os grupos e movimentos sociais estão produzindo no seu percurso de luta pelo direito à saúde envolve, portanto, um campo de diálogo e de solidariedade complexo, onde as pessoas desenvolvem aprendizagens importantes. Aprendizagens que devem interessar às tarefas da saúde e seus profissionais, tanto quanto a população que, nesse percurso educativo, deixa de ser um objeto das ações do poder dominante e passa a ser sujeito histórico, capaz de mudar rumos da vida coletiva.

         Trilhas de seguir: como são elas?

Vimos até aqui que fazer educação é um ato intencional: exige que se saiba em que direção queremos seguir e que tipo de sujeito humano estamos ajudando a formar. Aqui uma historinha de Eduardo Galeano nos ensina algo precioso. Alguém lhe perguntava, ao falar de luta popular e caminho de seguir, pra que servia a utopia - esse modelo de direção que se deve ter -, se nunca a alcançamos. O escritor disse: serve pra caminhar. Nossos objetivos servem pra caminhar, sim, e valem como processo de formação dos sujeitos sociais - nós -, profissionais de saúde e   população em processo de organização, que passamos a construir saberes situados e transformadores das práticas sociais.
O educador Paulo Freire já situava como importante a criação do novo – para ele, ensaio da esperança. E cuidava de observar que para se criar o novo se tinha de problematizar o futuro. Como seria isso?
Propondo os possíveis do sonho nos contextos da vida social e da educação, Freire questionava a idéia de se ver o futuro como algo fixo e inexorável, propondo, então, a pedagogia da esperança como esse abrir-se humano ao novo que humaniza as formações sociais. Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, publicação da Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, assim se refere à necessidade de problematizar o futuro:  

                
      “Nego a desproblematização do futuro a que sempre faço referência e que implica sua inexorabilidade. A desproblematização do futuro, numa compreensão mecanicista da história, de direita ou esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista, portanto, determinista da história o futuro é já sabido. A luta por um futuro já conhecido a priori prescinde de esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de que, é uma ruptura com a natureza humana, social e historicamente constituindo-se. O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo (FREIRE; 2000:56).
     

         A questão da criatividade nos caminhos da luta social envolve, pois, mudanças nos paradigmas atuais de saúde, que são as referências que constroem o que se considera ciência em uma época e, também, em termos de futuro, em uma afirmação que o vê como passível de mudança. Na condição dos sujeitos que vivem na modernidade, faz-se necessário fazer a crítica da ciência que tem se erigido como um braço do capitalismo, nesta fase do capital mundializado. Quem faz ciência, ao passar a ser uma peça na engrenagem dos mercados, deve acordar para mudar a direção dessa história – e se a complexidade dos nossos problemas sociais é grande, é preciso que se atue de modo conjunto, multidisciplinar, para que nossa ação atinja as múltiplas dimensões da realidade.
        
         Subjetividade no trabalho da medicina social

Vejamos como podemos operar concretamente com essa idéia de nos situarmos na relação com a população como produtores de sentidos que sejam potentes para realizar transformações.
Pensemos com as Cirandas da Vida, não como modelo de ação, mas como lugar de problematizarmos o vivido para falarmos de modo prático também.
No contexto da educação popular em saúde, trabalhamos com problemas que a população considera como problemas de saúde (e que incluem um trabalho sobre as determinantes sociais que causam a doença, como moradia, transporte, educação, trabalho, saneamento básico, etc). Também, podemos desenvolver potenciais individuais e coletivos, que promovam a saúde – o que significa que podemos enfocar a saúde e não apenas a doença. Estes dois âmbitos de ação são igualmente importantes e devem conectar-se intimamente.
Estamos a dizer, também, que o conhecimento que é produzido sobre saúde, no percurso educativo que instauramos, é um saber situado - possui um contexto onde ele nasce e se desenvolve: onde adquire sentido. Vimos de anotar que o saber produzido na relação entre educadores em saúde e população é tecido na situação de interação vivida pelos sujeitos que se educam, onde são construídos permanentemente sentidos sobre o vivido.
Isso quer dizer que se temos um trabalho a fazer com a desnutrição infantil em um bairro da periferia onde atuamos, por exemplo, seria importante perceber que os modos de cuidar e de viver das famílias das crianças daquele lugar vão compor um saber situado que construiremos sobre o problema.
Sabe-se que no mundo da vida popular a lógica do individualismo costuma ser quebrada e a criança muitas vezes é parceira dos pais na luta pela vida – o que faz com que a figura do pai e da mãe provedores, realizadores de pequenos e atentos cuidados , no cotidiano das classes trabalhadoras – onde largas parcelas estão  atualmente estão em crônico desemprego -  em alguma medida, se modifique.
Outro exemplo: estudo de diabetes em mulheres pobre, em determinada cultura humana, mostrou que as medicações e as prescrições eram relegadas e as pacientes não melhoravam; observou-se, ao levantar problematizações dessa ordem em grupos, que elas se cuidavam menos que os homens. Por não trabalharem fora (devido à dificuldade de emprego na meia idade), as mulheres ficavam à disposição dos que trabalhavam fora para “botar o almoço”, servi-los, enfim, sem que estes percebessem a necessidade de alguns cuidados, horários e remédios serem cumpridos pela mulher que ficava no lar. A lógica familiar que imperava levava as pessoas a repartirem encargos e, no caso da mulher pobre que não trabalhava fora, o serviço de casa ficava todo sob sua responsabilidade. Já os homens do lugar diziam: “primeiro eu” – e eram respeitados nisso. Uma questão de gênero (a construção social do sexo e do poder entre os sexos), pois, atravessa nossa prática, quando no trabalho com a saúde coletiva. Como atuar em saúde coletiva sem dialogar e situar nossos saberes nestes contextos culturais concretos?
         Vemos assim, que é como se víssemos aqui que uma abordagem nossa em saúde coletiva, pois, deveria implicar um processo de “desnaturalização” progressiva das categorias nosológicas. É como se devêssemos notar e considerar que onde tínhamos natureza (organísmica) apenas, agora temos também relações de poder e significados dados às vicissitudes do corpo. Isso não quer dizer que não exista a positividade do saber da medicina e sua eficácia prática seja deixada de lado, como se fosse pura ideologia ou eficácia simbólica. Apenas que reconhecemos a natureza híbrida e composta, dialogal e situada do conhecimento da saúde nos contextos da educação popular.
Esta compósita mistura – saber popular e científico – nos leva à importância de lidarmos com grupos, valorando o princípio de comunidade e sua participação na vida coletiva do lugar.
    
         Como os grupos podem funcionar como grupos-sujeito?

O estudo de Guatarri e Rolnix sobre a contemporaneidade intitulado “Cartografias do Desejo” (1986), publicação da Editora Vozes, Rio de Janeiro, detém-se sobre as micropolíticas do desejo, que envolvem uma espécie de “colonização da subjetividade humana”. O capitalismo, dessa maneira, não funcionaria apenas no registro dos valores de troca, mas seria garantida sua permanência por meio de um controle de subjetivação.
Aponta, este estudo, que o capitalismo mundial, em tempos de globalização, além de acontecer no plano econômico, produz bens simbólicos e subjetividades (esse plano da interioridade das pessoas), resultando também por fazer as relações sociais funcionarem de modo maquínico, serializado. A produção de subjetividades, então, por acontecer como em uma linha de montagem, tentando padronizar as pessoas, suas formas de conviver e ser, levando-as, em grande medida, a aceitar padrões coisificantes nas relações humanas, que seria preciso criticar e reinventar.  
Relacionando-se com seu ambiente social, a subjetividade, assim, seria composta essencialmente por um conjunto de afetos cambiantes, que comporiam uma espécie de cartografia do desejo, que estaria em circulação nos conjuntos sociais de diferentes formas. É que, embora circulando no mundo social, a subjetividade é assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares (GUATTAR/ROLNIX;1986).
Guatarri e Rolnix observam, pois, que o capitalismo realiza, em escala mundial, uma sujeição que alcança as subjetividades; essa sujeição acontece também por meio de uma modelização unificadora de gostos e desejos. Essa espécie de economia subjetiva ocorreria, logo, em todos os níveis do consumo: na verdade, o capitalismo produz subjetividades - modos de ser do eu - e comportamento como em uma fábrica ou linha de montagem. Por haver essa espécie de serialização, de maquinização,  coisificação das pessoas em sua forma de funcionamento social, nós temos dificuldade de fazer a crítica do que a indústria cultural e a comunicação de massas produzem de desumanização (exclusão e desigualdade) e que reafirma o modelo concentrador de renda, que seria vital mudar.
É inegável, porém , que com a mesma força com que o capital cultural se reproduz, também há formas de resistência humanizadoras. Essa produção em série de subjetividades - que atua não mais apenas fabricando “modos de ter e fazer”, mas também de “modos de ser e sentir” - pode ser contestada. Daí que Guattari e Rolnix propõem o caminho da singularização como o modo de cada pessoa e grupo social fazer a crítica do modelo coisificador vigente e buscar seguir os seus percursos desejantes singulares nos seus grupos sociais.
Desconstruir, portanto, essa linha de manipulação de subjetividades que incentiva a forma de funcionamento do capital autoconservar-se implicaria, segundo os autores Guattari e Rolnix, tentar formas de singularização existencial que ajudassem pessoas e grupos a  construírem seus mundos, instaurarem seus sonhos de humanização e, enfim, proclamar seu direito à singularidade em todos os níveis de produção de sua diferença.
Sabemos que tanto os potenciais dos grupos populares como o das pessoas, individualmente, devem emergir nos percursos educativos, já que o saber que transforma, necessariamente, é situado em condições específicas da vida social que se quer transformar.
Para esse conhecimento crítico vir a unir as pessoas e suas capacidades, precisa romper com os processos de homogeneização das subjetividades - essa modelização uniformizadora que apassiva as pessoas. Os percursos de singularização são estes caminhos grupais onde os sujeitos apostam na sua sensibilidade e criatividade, na sua possibilidade de construir saberes conjuntos capazes de transformar realidades de miséria e desigualdades.
Pode-se dizer, pois, que estamos a lidar, nos percursos de educação popular e saúde, com transformações e subjetividades, com reprodução (o que repetimos, o que conservamos, preservamos de nossa memória coletiva) e resistência - o que mudamos por ser alienador e coisificador, em uma palavra, desumanizador.
Dowbor  (1998), em seu livro “A produção Social”, da Editora Vozes, Rio de Janeiro, nos convoca a refletir sobre globalização:

      “Globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante e uma dinâmica diferenciada. Por trás dessa desarticulação, encontramos a dimensão espacial do descompasso entre a rapidez da evolução das técnicas, e a relativa lentidão das transformações institucionais, gerando uma ampla esfera econômica mundial sem controle ou regulação, e uma perda generalizada de governabilidade no planeta (DOWBOR; 1983:31)

Por dentro desses processos que se dão em nível internacional, relações de poder reproduzem o instituído, mas também acontecem transformações, realiza-se resistências a esse processo desumanizador. Como?

                     Luta e transformação na ação popular em saúde

Sabemos que atualmente ocorre uma ampliação gigantesca da especulação financeira e da privatização dos mercados, que agora abarcam os espaços da informação e da comunicação em escalada mundial.
As políticas públicas acabam, nesse quadro, por se reduzirem a estratégias compensatórias de diminuição da pobreza e contenção de reações a esse modelo concentrador de renda. Formam-se blocos de empresas transnacionais que resultam por hierarquizar espaços sociais e acessos a produções de bens econômicos e simbólicos. A lógica da concentração de riquezas tenta perpassar a lógica da vida cultural de resistência.
Em meio a isso tudo, porém, “se abrem novas dimensões para a inserção do indivíduo no processo de reprodução social, permitindo talvez a reconstituição de um ser humano mais integrado” (DOWBOR; 1998:30). O vivido nos espaços locais - como a casa, a escola, a comunidade, as experiências formadoras de ordem variada, incluindo as que lidam com a espiritualidade -, tenta olhar o que se tem acumulado como “experiência de si mesmo”; tenta rever o papel do Estado, a criação de novos espaços e os motivos de interação; tenta alargar a produção de saberes de transformação e arrisca-se a tentar repertórios de ações coletivas solidários.
Vivenciando esta ação municipal, na prefeitura do Partido dos Trabalhadores, intitulada Cirandas da Vida, vimos como seria importante buscar o repertório de ações coletivas, sua história, sua pujante cultura de resistência – essa aprendizagem que o universo popular faz em seu caminho. Um dos primeiros aprendizados que fizemos como coletivo foi perceber que o motor social das mudanças não estava no sistema político institucionalizado. Tendia-se a ver as mudanças no Estado como algo que acontecia apenas por meio das instituições políticas formais, representativas e isso reduzia nossa visão do que estava a acontecer. Perceber a necessidade de autonomia da luta popular é uma face importante do nosso trabalho.
As mudanças na questão do feminino, por exemplo, aconteceram e acontecem no espaço da vida privada e comunitária e são capazes de irem modificando uma exploração instaurada por séculos e séculos. Isso não significa que não haja aspectos da luta do feminino que aconteçam na esfera institucional e estatal. Significa que nas Cirandas é importante transformar situações particulares de reivindicações em caminhos de transformação das políticas públicas.
Segundo Cohen e Arato (1992), a moderna ação coletiva nos movimentos sociais parece pressupor o desenvolvimento da autonomia do social e dos espaços políticos dentro da sociedade civil e da sociedade política, que passam a serem vistos como construtores de novas identidades, novos sujeitos menos desiguais. Aqui desfilam lutas étnicas, feminicas e outras, que alcançam modificar o valor das pessoas e os preconceitos sociais e, ainda, tentam garantir modificação junto às políticas públicas.
Formas de agrupamentos e de vida associativa, novas organizações e dos novos espaços sociais comunitários, na verdade solidariedades complexas vão sendo criadas (como a socioeconomia solidária, por exemplo) e, ao mesmo tempo, aperta-se o laço das reivindicações e do diálogo das comunidades com a esfera pública institucional.
         É dessa forma que a ação popular em saúde migra das visões que enfatizavam apenas os movimentos sociais - esse universo da ação coletiva – como mobilização de recursos por grupos de interesse e de protesto comunais (como em Tilly; 1981:17). Chega-se, então, a admitir que, se há novas solidariedades que resultam por conseguirem sua institucionalização (como, por exemplo, o direito de creche, na luta feminista, ter sido associado ao direito do cidadão criança e não mais a uma garantia da mulher trabalhadora de empresas capitalistas); há a construção de novas identidades e demandas que possuem aspectos inegociáveis nos processos associativos (como a da liberdade de vivenciar os aspectos brincantes da vida, a de expressar-se nas  linguagens da arte e a espiritualidade).

         Construindo a cultura da educação em saúde
        
Assim, se as instituições políticas formais representativas (como os sindicatos, as associações, os partidos políticos, por exemplo) são importantes para garantir direitos, estes devem ser embasados em uma cultura política que comporte uma cultura da vida em sua inteireza – e nessa esfera,  a saúde no contexto da educação popular tem seu lugar fundamental. Como seriam estes pontos de luz no caminho de refletir sobre a prática de transformar?
Transformar ao máximo o que tem um caráter de evento em algo que “continua” no seio mesmo da prática cotidiana é uma desafiadora proposta. O trabalho em saúde junto às classes populares se ergue em meio a difíceis situações de exclusão e pobreza, que se reproduzem ao lado de enormes concentrações de renda; os séculos de mudez popular trazem para nós uma herança de silenciamentos que apaga em muito a voz dos grupos populares. E, ainda, em grande medida, as classes trabalhadoras têm trazido um desejo emergencial de viabilização da sobrevivência e ascensão social, no sentido estrito, que não conseguimos responder e, então, nossas ações mais arrojadas e coerentes de resistência cultural e transformação social ficam toldadas.
Uma cultura da educação em saúde deveria, pois, ser uma cultura de transformação e de mudança de paradigmas: seria onde o bio-médico acrescentaria a assunção da dimensão social da medicina. Nesse contexto, temos de problematizar o que nos é dado em uma moldura de naturalidade e imutabildiade. Detenhamo-nos nesse aspecto no contexto de uma cultura da educação em saúde. .
Para pensar um pouco mais nessa perspectiva, articularemos uma idéia de sujeito, experiência, autoralidade, história, diálogo e produção de sentidos como lugar de perguntas ou de uma fala e escuta aos sujeitos sociais com os quais trabalhamos em saúde.

Experiência e narrativa como tecido onde se tece a ação educativa

As abordagens do humano ressentem-se de um movimento pendular característico: ora repetem uma espécie de sociologismo, considerando apenas aspectos políticos graúdos, sobretudo as relações da educação com o Estado e suas conformações atuais, ora vão ter em um lugar onde o psicologismo olha os acontecimentos do tempo como uma avestruz: enterrando a cabeça na terra para não se aperceber.
Para nós, o ato de falar do humano incorpora a prática social das pessoas, em seus aspectos históricos, políticos e econômicos, mas também deve abarcar o universo do mundo de vida, as interações e, inclusive, a espiritualidade de todos nós.
Por estarmos no que se pode chamar modernidade, a problemática das linguagens nos atravessa. Deveremos, portanto, ter uma idéia do que consideramos narratividade, como ato que é preservação e, também, criação. Podemos dizer, em princípio, que narrar é o lugar de problematizar os sentidos coletivos; é lugar de pensar os possíveis, o que temos como projeto de futuro. É, pois,  também um jeito de perguntar como a história pode continuar, acrescentaria Walter Benjamim. Nas palavras de Walter Benjamin:

“O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem (BENJAMIN; 1944:11).

Antigamente, o fato de se viver juntos experiências comunitárias, trazia mais de perto certa proximidade entre vida e palavra. O fato de viverem juntos, coletivamente, uma experiência que era trabalho e ao mesmo tempo vida repartida dava certa comunidade de sentidos, de valores às pessoas, uma unidade mais evidente.
Os sentidos pareciam dados, em lugares onde havia formas comunitárias de trabalho, pela prática de vida. Hoje, temos de buscar esses sentidos partilhados; eles se acham espalhados, em meio a outros sentidos dados pela indústria de massas, pela mídia televisiva, pelo acentuado processo de consumismo nesse estágio de mundialização do capital em que estamos. Haveria, pois, uma relação sempre dialética, entre a prática social e o que os sujeitos dizem dela. Quer dizer, certa disjunção, não coincidência e ao mesmo tempo certa complementaridade entre narrativa e vida concreta. Algumas coisas que a gente vive podem ser traduzidas no que se diz; outras, sobram  “não cabem na palavra”, como se poderia dizer. Na verdade, a ordem do ponto (da letra, da escrita do que se quer dizer sobre a vida) é diferente da ordem do onto (da existência mesma).
Isso significa que teríamos de garimpar o que se quer dizer realmente e que interessa ao nosso crescimento como pessoa e coletividade, em meio a uma porção de outros sentidos que nos coisificam e desumanizam. Isso quer dizer também que temos de articular experiência como tradição e como lugar de problematizar o futuro: como desejo de preservar coisas preciosas para nós, em nossa vida pessoa e social e como modo de perguntar o que é importante continuar ou mudar no caminho que vínhamos trilhando. 
As situações de educação em saúde seriam, portanto, lugar de problematizar e escolher sentidos para nossa vida pessoal e coletiva. A partir disso, como podemos apoiar e ajudar a organizar redes sociais – essa forma de solidariedade complexa, que tenta dar conta da complexidade dos problemas a enfrentar?
Primeiro: falamos de problematização porque os sentidos que damos às nossas experiências não estão já prontos, devem ser buscados pelo coletivo, mas sabendo-se que há uma porção deles que “naturalizamos”, nos acostumamos a eles e nem percebemos o quanto eles nos reduzem a “coisa” e atrofiam a inteireza que temos como seres humanos.
Dissemos então que precisamos construir uma espécie de cultura da educação em saúde, onde possamos nos posicionar como sujeitos, capazes de produzir sentidos para a vida imaginada, e não apenas para a repetição do que já não se suporta; uma cultura que abarque o ser visto de modo multidimensional e não apenas reafirme o ter dentro de modelos tão desiguais; que seja capaz de perceber os fundamentos emocionais e espirituais de nosso ser cultural.
Será importante que uma cultura da educação em saúde como cultura da vida, possa ser pensada comportando uma visão de narrativa que seja estática, que se mova na construção de novos mundos e perspectivas; devemos ter claro que a linguagem não é o mesmo que a vida, que é a tentativa da tradução de algo de uma ordem em outra. Ocorre uma não unidade entre prática social e sentido; os sentidos postos em circulação na vida estão em muito adulterando nossa humanidade. Por isso faz-se urgente problematizar o sentido que estamos dando a nossas experiências, colocando-nos também como seres mais inteiros. E situando-nos, a nós, educadores, como sujeitos aprendentes disso.

         Presencialidade e expressividade

Para tanto uma espécie de pedagogia da voz, como poderíamos chamar, deveria erguer-se. Como ajuda-nos Paul Zumthor, ao trabalhar com a idéia de performance (que é a oralidade, presença das pessoas uma ante outra; “falas em interação”), a voz traz o existir humano em sua presença e é também o clamor do que não conseguimos dizer por meio da letra, da escrita. A partir dessa idéia de perfomance, desenvolvemos a de presencialidade, que é esse importante trabalho dos seres humanos em presença, educando-se e valorizando a “fala” que trazem, em suas expansões artísticas e expressões variadas, compondo uma cultura que traz a riqueza do sujeito (em sua inteireza) e das interações locais.
Aqui enfatizamos voz e presença em seu caráter de “construção” - algo que se cria enquanto sentido, no momento mesmo em que vai sendo dito. Fala que não é apenas memória, mas desafio de atuar no presente construindo novos possíveis e novas significações partilhadas. Assim: quando dizemos algo, podemos nos ouvir agora e, de repente, podemos produzir e percebermos sentidos novos para nossa experiência.
Aqui deve ficar claro, portanto, o espaço da oralidade, enquanto dizer que tem seu valor, independente da escrita que se vai fazer a partir, com ou em diálogo com esse falar. As rodas de conversas, os agrupamentos e ações que utilizam formas de linguagens várias são muito caros a nós, educadores em saúde.
A socialidade define um conjunto de mundos vividos e é ela que queremos tocar: é uma reflexão profunda sobre o humano nos tempos de hoje que estamos a propor – e ela se dá por meio de caminhos de ação organizativa. Nessa ida, a experiência coletiva vai se formando e reinventando por meio do fazer prático dos caminhos.

Saberes e amor    

Considerar os aspectos econômicos, sociais e culturais que fazem a saúde da população e seus grupos não do ponto de vista objetivo apenas, mas captar a dimensão subjetiva deles, o “modo como são vividos”, os variados modos de se emocionar das culturas, no dizer de Maturana, seria fundamental. Na verdade, na base da educação há o amor: substrato de todo ato educativo e intencional; a quem interessa tornar o amor uma palavra banal e gasta, redutora e estéril, ao invés de fertilizadora de diálogos, de imagens de futuro e passado partilhados, referências profundas de um humano menos aviltado em nós?
Como uma pessoa vive sua separação e cria vários filhos com um salário mínimo é diferente de outra; os sentidos que darão a essa experiência terão pontos de contato e terão a variabilidade imensa do humano, aquilo que faz com que sejamos únicos no mundo. Essa fala mais profunda nos traz um sujeito em toda sua inteireza; um sujeito que se emociona, que é fundado estruturalmente pelo modo como ama. O falar e o sentir que trazemos, portanto, vão nos levar a buscar também o agir que temos palmilhado; pensarmo-nos assim é considerarmos educandos e educadores um ser complexo e menos fragmentado. Quando nos situamos inteiros, buscamos construir percursos em que estamos lutando pela inteireza de todos os sujeitos.
Sabemos as pessoas vivem às voltas com grandes dilemas de sobrevivência. Também o modo como os jovens e adultos estão a viver suas buscas de completude no amor; a angústia de construir um presente que “se improvisa” como eles dizem, entre fomes e faltas; o olhar dos outros dentro de nós, muitas vezes de um modo duro; o desafio de construir a esperança em um país que não tem já pronto um projeto de futuro para os filhos das camadas empobrecidas da população; a precisão de entender-se com o mundo doméstico onde se convive com o diferente, tudo isto não poucas vezes adquire os tons sombrios da desistência, do desamor, da violência e do desamparo. Embora o sofrimento seja uma realidade para os alunos é preciso que o encontro que proporcionamos entre grupos e intra-grupos seja lugar de produzir sentido sobre nossas experiências. E que estas experiências contem de um sujeito multidimensional: um sujeito que precisa perceber e refletir sobre seu agir, seu pensar e seu sentir como dimensões que estão relacionadas. Que a vida falada seja a que abarca tudo o que nos faz sujeitos amorosos e capazes de sonhar (as simbolizações do nosso ser cultural por inteiro).
Podemos perguntar agora, com mais propriedade, com que idéia de sujeito estamos trabalhando.

Para a idéia de um sujeito mais inteiro

Há uma dimensão sensível  onde nosso corpo físico e pensante, simbólico está atuante  , que deve estar presente nos atos ou ensaios de aprender e que envolve esse “dar sentido às experiências vividas”. A experiência traz, portanto, uma dimensão prática (de ação realizada), uma dimensão sensível e uma dimensão de saber intelectual e afetivo-moral. Tornando simples: um fazer, um sentir e um pensar que se entrelaçam e nos trazem um sujeito em toda a sua inteireza.
Contudo, será que consideramos, de fato, que toda produção de conhecimento é também produção simbólica? O pensamento vai se erguendo, quando se é criança, como uma lógica da ação; quando nos tornamos jovens e adultos o pensamento se desenvolve, alcançando níveis mais abstratos, a ponto de podermos pensar de um modo bastante complexo sobre realidades imaginadas. Sabemos que o conhecimento se constrói com a ação do sujeito no mundo; uma ação em que também o simbólico está envolvido; simbólico como uma lógica dos afetos, aonde a representação que vamos tecendo sobre as coisas se junta ao nosso modo de apropriarmo-nos de outros lados mais objetivos da realidade. 
Pretendemos, pois, sugerir que construir uma cultura da educação exige que se busque refletir sobre os sentidos que estamos produzindo sobre nossas vidas junto às situações de aprendizagem da luta coletiva. Essa discussão sobre os sentidos que estamos dando às nossas experiências exige que reflitamos sobre:
- que idéia de sujeito temos em vista: um sujeito multidimensional? Se sabemos que o sujeito tem a dimensão do corpo; a desejante (que envolve a dinâmica dos afetos e da moral) e a da inteligência (além da síntese dinâmica e da direção deste tripé, que chamamos espiritualidade), será que nossa produção de sentidos em sala de aula tem envolvido as experiências das pessoas em todos estes âmbitos da vida?  Será que temos pensado os sujeitos que aprendem em toda a sua inteireza?
Façamos um breve parêntese. Costumeiramente a gente tem feito assim: amor e coisas de afeto é com nossa família ou outros amores; qualquer transcendência ou pergunta sobre o destino, o ser e a dor é espiritualidade, portanto é apenas nas esferas religiosas que vamos respondê-las; as questões da ética são do mundo da política; as da estética, essa fome de arte das pessoas, são coisas da cultura, de grupos de bairro e lazer; enfim, a gente vai botando essas “caixinhas” fora da sala de aula e erigindo um saber esvaziado de sentidos. Então, quando fazemos isso, não estamos a mutilar um sujeito, que deveria ser tomado em sua inteireza? Por que expulsar da escola aspectos que vêem o humano apenas como “um sujeito que estuda para dar conta de arrumar emprego e servir a um mercado do jeito que ele se apresenta hoje”?
Veja, em um estudo que fizemos, vimos que, para as classes populares, trabalho é exploração e sacrifício; por isso se retira toda a gratificação possível do mundo do trabalho e desloca-se para o consumo. Nesse quadro, também escolarização passa a ser essencialmente preparação para esse mercado; daí, então, se reduz a complexidade do humano a esse aspecto, retirando-se tudo o que se poderia fazê-lo mais completo, como o corpo, a afetividade, a ética, a estética, a espiritualidade, a moral, em nome de um “aprender para o mercado de trabalho” que mutila o sujeito e reafirma o modo de funcionamento do capital da forma como ele acontece hoje. 
Há outro aspecto que decorre dessa mutilação e compartimentalização do ser: muitas vezes se quer discutir sobre cultura, retirando-se nossas formas de nos emocionarmos, nossos afetos e sentimentos do próprio terreno de vida onde eles medram, onde eles florescem, ainda que com suas ervas daninhas. Muitas vezes pensamos, mesmo, que cultura é apenas ver um filme, uma peça de teatro, algo que alguém faz e a gente consome; colocamo-nos como objetos de toda essa rede simbólica que comenta a vida, tece significados e compõe metáforas sobre o que temos vivido e ansiado. Se cultura envolve estes produtos, o processo destas construções também é importante; todos temos nossa artisticidade e é preciso que possamos devolver às pessoas seu valor como criadores de uma cultura da educação, uma cultura que pede que percebamos a vida como um todo e as múltiplas produções de sentidos e atos que damos a ela (quer tenhamos concretizado isto em obras ou não), como elemento cultural.
Cultivar as vivências sensíveis, em uma perspectiva que atinja nosso cotidiano como educadores e educadoras parece-nos dever envolver uma idéia de sujeito mais ampla e, também, uma idéia de encontro em saúde como lugar de produzir sentido para as experiências de sofrimento e luta, dor e esperanças, doença e saúde que vivemos. Isso exige em um contexto que considere como fundante, nessa fala individual e coletiva, as histórias de cada um e dos grupos onde se vive.
Pinçamos aqui outro aspecto importante no modo como se pode pensar essa fala-e-escuta da experiência do outro e dos seus grupos: o caráter dialogal dessa nossa “busca” de escuta às experiências. O diálogo pressupõe que tenhamos uma idéia de conhecimento que inclui o saber como algo que é produzido por todo o corpo social e que cada pessoa recompõe quando aprende.
Daí é que decorre nossa proposta de trabalhar com a história da pessoa, dos grupos e aspectos da cultura local, em suas linguagens expressivas, também para exercitar a construção da autoralidade dos que vivem percursos educativos.

História e Autoralidade

Estamos propondo agora pensarmo-nos como pessoas que são autores de suas falas individuais e coletivas: como organizar essa prática de buscar a experiência dos grupos com quem lutamos? 
Pensar educação, hoje, portanto, parece-nos estar junto da tarefa necessária de considerar como estamos vivendo as realidades sócio-políticas em sua relação com nosso mundo da vida.
Nas Cirandas da Vida, por trabalharmos com as linguagens da população, podemos dizer que é importante no falar e escutar das experiências populares, trazermos o campo expressivo do outro, que não só se diz oralmente (falando), mas desenhando, pintando, cantando, dramatizando, enfim, utiliza sua riqueza expressiva de um modo mais abrangente. Observar o trânsito e a construção do pensamento, ao fazer sua viagem de uma linguagem para outra; olhar como podemos falar com as imagens da arte, que trazem extratos do inconsciente profundo das pessoas e das culturas humanas; ver como textos se transmudam em atos no fazer artístico, atos que se partilha com outras pessoas e que também são produções de significados novos em enfrentamento com os antigos; tudo isso nos deve mover para pensar que ser autor das próprias falas e significados é uma forma de dar um lugar de sujeito ao outro, de proporcionar que ele “tome mais de conta” e tenha mais consciência de sua história pessoal e coletiva. Isso é um modo de humanização, segundo percebemos. 
Continuemos: há, pois, um inegável vínculo entre conhecimento e alteridade. Todo conhecimento é conhecimento do Outro; ele se dá na malha dos afetos que construímos ao imaginar ou experienciar concretamente as coisas do mundo.          
Nossa ótica, porém, está sociocentricamente armada; quer dizer, temos dificuldade de “pedir um pouquinho emprestado os olhos dos outros para enxergar como eles olham”; vemos as coisas sem nos “colocar no lugar do outro”. Isso exige um trabalho sobre o falar e o escutar que envolve uma leitura do que seria o campo expressivo do outro e de como estamos tecendo caminhos para apreendê-lo.

                     Linguagens: o campo expressivo do Outro

Buscar compor um campo dialógico - espaço de recomposição de memórias e de gestação do novo - esse um desafio importante que compõe uma cultura da saúde como cultura da vida.
Há, contudo, falas com “materiais emprestados”, que não têm o mesmo valor para os sujeitos; são ecos do que se diz sobre eles, prenhes de ideologia e ante os quais as pessoas não se detiveram para examinar crítica e criativamente. Seria importante, pois, um movimento de criticização do vivido. 
A aprendizagem é um processo de produção de sentidos que se significa familiar e socialmente, ainda nos apropriemos individualmente do que se está a aprender. No aprender se elabora uma apropriação objetivante e uma elaboração subjetivante. A elaboração objetivante requer dados, construções hipotéticas, raciocínios abstratos, generalizações, classificações e ordenações mais ou menos complexas; em seus procedimentos, opera-se com as informações sobre as coisas. Isso seria diferente de buscarmos nossa experiência com o que está sendo estudado e, assim chegarmos a ir tecendo um processo de formação, que é diferente de adquirir a mera informação. Na verdade, formação é algo muito maior que informação e exige um demorado experienciar as realidades pensadas e sentidas; e une reflexão, também com prática social.
Aqui se dá um lugar especial a uma “leitura do vivido”, em uma espécie de exercício de meta-linguagem; assim: vive-se ou se viveu coisas e se vai refletir sobre elas, distanciando-se para melhor pensá-las. A atribuição simbólica pessoal de significado ao que vai sendo trabalhado como experiência traz um sujeito mais inteiro, que evoca sua percepção sensível (sentimentos, afetos, imagens) no que está a ser elaborado como pensamento.

Produção de sentidos

Como faremos, então, para realizar essa assunção do sujeito, essa “chamada” para que nossa população e grupos-sujeito se situem não como objetos, mas como produtores dos significados para seus dizeres, suas vidas?
Há uma porção de sentidos postos sobre os sujeitos e que são como aquela primeira água suja de uma torneira que se custa a abrir e sai um tanto de ferrugem. É que a indústria cultural faz o que Félix Guattari e Rolnix chamam de homogeneização das subjetividades (querem “todo mundo igualzinho” para consumir o que ela manda); a mídia vai jogando, então, no mercado não só produtos, mas junto com eles comportamentos conforme lhe interessa para vender mais e aumentar mais o consumo, sem se preocupar com razões éticas; como também a cultura televisiva fazendo seu “servicinho” de apagar as singularidades culturais, dos grupos, das pessoas, seus modos de dar sentido ao vivido, que precisam, por isso, serem problematizados, revistos, em salas de aula, assim se vai construindo uma cultura da educação como possibilidade de resistência.
Não se pode esquecer que, se o Estado se reduz e a ética obedece mais ao mercado, que vende e quer vender indiscriminadamente, reafirma-se, vinca-se o ter de um modo que expropria as pessoas de sua humanidade. Pasolini afirma, até, que o consumo está causando uma espécie de mutação na alma humana.
Realiza-se, assim, nesse quadro que estamos a esboçar da vida das populações com as quais trabalhamos em saúde, também apagamentos sobre a memória das nossas gentes; seus núcleos de vitalidade, criatividade são extirpados em nome de uma lógica capitalista onde o ter mais vai anulando e neutralizando as outras dimensões do ser.
As memórias das populações, advindas de extratos de experiências variadíssimas são pulverizadas, caladas, sonegados seus espaços de se dizerem, de construir sentidos e ações a partir delas, para os tempos de agora.
É que, na modernidade, vive-se instantâneos; fragmentações em excesso; há uma dificuldade de qualquer reconstrução das histórias das pessoas, dos grupos e das culturas, em suas singularidades. Parece que a vinculação da prática de vida com o sentido que damos ao vivido se esgarça. Walter Benjamim fala que seria importante “fazer uma experiência com o passado”, para retomar os núcleos profundos das histórias, nossa força de contá-las e continuar de um novo jeito.
Trocando em miúdos: criticizar o que a indústria cultural “joga” para nós como verdade, também buscar na memória o que pode ser reconstituído nos grupo e vida popular; e trabalhar o que se tem posto sobre verdade “sobre nós”, pondo isso em tensão com o que se pensa disso realmente, o que se sente e vive “por dentro” do que se vai vendendo como “imagem” sobre nós, é construir uma cultura da educação como a vida que nos interessa fazer valer. Não podemos esquecer que estamos a tentar nos mover no território comunitário onde estão se construindo redes e grupos-sujeito, parcerias e ações coletivas organizadas cooperativamente com a população.
Seria nesse contexto que brotariam os novos sentidos para as lutas populares; seria nestes contextos que escutar é algo que devolve ao outro o papel de construtor de significações importantes para suas vidas e caminhos.

Acordando os possíveis: o sonho do que se pode ser também em nós

Outro aspecto a considerar: para acordar os possíveis e mantermo-nos construindo as novas realidades do futuro com os jovens e adultos com os quais trabalhamos: é preciso buscar aprendermos com as lições do caminho. Podemos nos propor, portanto, a pensar nossa ação conjunta, refletindo sobre o que tem nos movido nos nossos percursos educativos e qual o sentido que temos dado, nós também, às nossas experiências.
Uma espécie de pedagogia da voz e da pergunta, como vimos de dizer, pode nos ajudar a colher os frutos que temos plantado em nosso cotidiano, flagrando, assim, onde nossa experiência, feito retratos da vida em movimento, possa ser trazida como uma fruta, para alimento coletivo. Pode-se dizer que faremos desse encontro entre nós, também um momento de colocarmos o que temos achado precioso no nosso matulão (essa simbólica sacola de lembranças e de coisas úteis que os viandantes carregam). 
Sugestão: como desafio primeiro poderíamos tentar trabalhar as situações-limite: as que a comunidade, em seus grupos, estaria mais propensa a refletir, a querer modificar. A seguir, se poderia trabalhar as situações impulsionadoras (que funcionam ajudando a população a caminhar), em que história elas brotaram, que superações parecem fazer. Na verdade intentaríamos puxar das águas da memória as histórias que os grupos trazem do vivido, com suas sombras e margens, veredas e fulgores.
Já que falamos da voz dos sujeitos, o que seriam as perguntas que deveríamos tecer, em meio a esse movimento de escuta? Que perguntas poderíamos fazer dentro das histórias que as pessoas estarão a narrar? :
-   as perguntas são eixos de encaminhamentos que nos movem; as perguntas podem estar inconscientes; pode-se, mesmo, não se estar a ouvi-las ou a dialogar com elas;
-  as perguntas trazidas pelas histórias podem envolver nossa biografia, que capta as dimensões subjetivas do vivido e, também, o movimento do pensamento que se está a organizar, na prática concreta de todos nós;
- para construirmos um pensamento coletivo será importante repartirmos as perguntas e as histórias do caminho que percorremos juntos. As perguntas vindas com as histórias podem funcionar como leituras da prática coletiva de vida (dos alunos e nossas);
- as perguntas vindas com os contextos do mundo de vida são também discurso interior que, ao ser verbalizado, toma certo caráter de organização do mundo interno, em seu movimento de compreensão do vivido;
- a socialização do que vivemos funciona como base da construção reflexiva do grupo: é movimento de suspensão crítica da prática de vida, base de todo saber e deve voltar a ela, transformando-a;
- refletir criticamente sobre uma situação social requer buscarmos as conexões dos pequenos acontecimentos cotidianos com as situações outras que envolvem o mundo social maior; a idéia de totalidade implica esse movimento dialético que vai da parte para o todo e vice-versa; como quando jogamos pedrinhas em um lago, cada círculo vai “chamando outro” maior. Paulo Freire nomeava de práxis a esse movimento de desvelar o mundo, que se dá da prática (ação) para a teoria (reflexão), e desta volta à prática novamente. A construção do diálogo nos grupos sociais pode se voltar para esse grande levantamento das problemáticas vividas pelas pessoas das comunidades em seu cotidiano e que se precisa trabalhar enquanto prática de produção de sentido nesse caminhar juntos.    
E nós, educadores em saúde ?                                    
Constelação é uma prática de escrita que Walter Benjamin produz, na análise de fenômenos que envolvem a dimensão subjetiva e os complexos objetos e realidades sociais.
Pensamos que construir uma cultura da educação em saúde como cultura da vida, como dissemos, seria também debruçarmo-nos no nosso caminho como profissionais da saúde que atuam com a dimensão educativa de sua prática. Esse exercício de autoralidade poderia ser visto também como nosso; é um modo de dar sentido à nossa experiência e aos contextos de nossa prática social individual e coletiva. Isso exige movermo-nos na reflexão crítica sobre nossos campos expressivos e dialógicos também; examinarmos nossa escuta e fala com os outros do nosso caminho e, em especial, as populações com quem trabalhamos em saúde. Comecemos com este mote primeiro.

                                       Muita paz. Ângela Linhares

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