Itinerários
para uma reflexão sobre saúde no contexto da educação popular
Pensar aspectos fundamentais sobre saúde no contexto
da educação popular requer que nos situemos, a nós educadores, como sujeitos
ante outros sujeitos que se educam no percurso de transformação social
escolhido. Aqui, desde já, vemos que fundamentalmente estamos diante de
relações entre sujeitos, caminhos de transformação que são educativos e direção
do percurso em comum a ser trilhado.
Ora, quando pensamos em caminhos de transformação
social é que estamos partindo da idéia de que há mudanças na vida pessoal e coletiva
a serem feitas. E também estamos tendo clareza de perceber que estas mudanças
acontecem com sujeitos históricos que, por sua vez, modificam os processos
sociais onde estão situados.
Na verdade, educa-se os seres humanos porque eles são
inacabados: há uma direção e um caminho que se pensa trilhar para humanizar a
vida e o ambiente coletivo. No caso de uma sociedade com grandes desigualdades
sociais, a transformação deve envolver mudanças no quadro de pobreza e
exclusão, mas, também, mudanças na estrutura social. Por exemplo: lutar contra
a miséria é importante em qualquer âmbito, mas conseguir que o país possa
garantir, como política pública, medicamentos para AIDS no Sistema Único de
Saúde (SUS) é algo que incide diretamente na situação de desigualdade social e a transforma.
No caso da experiência das Cirandas da Vida, por
exemplo, que envolve saúde e educação popular (vivenciada na prefeitura do
Partido dos Trabalhadores), trabalhamos com a população da periferia a partir
da identificação das situações-limite, que são situações que exigem
transformação. Depois de identificadas estas situações-limite, são feitas
oficinas temáticas, onde se aprofunda como se construiu aquela realidade
historicamente e como se pode atuar na direção de mudá-la. Tenta-se identificar
grupos – atores sociais- que são parceiros e partícipes nessa transformação e,
então, se começa a realizar os enfrentamentos: diálogos que se encaminham para
reivindicações mais e mais concretas e conseqüentes. Roda de gestores e roda de
grupos populares se encontram e, apesar das especificidades de suas tarefas
sociais, fazem também uma roda única onde o princípio de comunidade e a esfera
institucional dialogam.
É importante ressaltar que, neste caminho de
transformações, os saberes são construídos na
relação da população com os profissionais da saúde (que estão a atuar com a
dimensão educativa da sua profissão).
Na verdade, estamos a dizer, inicialmente, que é
preciso se ter uma direção para nossa ação e reflexão – e que o percurso dialógico
que seguimos é um percurso de produção de sentidos para a luta social,
portanto, de transformação da exclusão e, também, das estruturas que a mantêm.
Pode-se dizer, desde logo, que no modelo de uma
medicina social que pensa educação em saúde coletiva, o sujeito que educa
também está a se educar na relação que se instaura entre eles. Vale aqui
sublinhar que é tão importante os processos de entendimento e produção de
saberes que vamos tecendo quanto o produto destas interações - o que a gente
tem pensado como “resultado” desse caminho.
Quem
são os sujeitos sociais de que estamos falando?
Estamos a considerar um novo modelo de sujeito das
práticas sociais com a saúde: um sujeito multidimensional, que tem as dimensões
desejantes (a ética-moral, a artística, a afetiva, a intuitiva, a espiritual),
a organísmica e a cognitiva. Um sujeito que vivencia numa cultura padrões de
cuidado: consigo, com o Outro e com o ambiente. Quando falamos, portanto, da vida
como o lugar do cuidado, nos referimos à vida
como um todo – onde a saúde e a doença são vivências da condição humana,
dotadas de significados particulares para os sujeitos que a experimentam.
Naturalmente, estamos em uma mudança de paradigmas,
que são as referências fundantes da ciência de um novo tempo histórico. E, como
diz Boaventura Santos, a partir de agora, todo paradigma da ciência deve ser
também um paradigma social e ético. Se, por exemplo, a medicina centrava-se em
um modelo bio-médico, ao trabalhar a dimensão educativa da saúde, o
profissional vai lidar com a esfera educativa de sua ação e, portanto, a
medicina social que ele passa a fazer o leva a funcionar dentro de outros
marcos de referência. Nesse marco, não podemos simplesmente “aplicar” nossas
receitas para condutas sociais – temos de nos situar como sujeitos ante
sujeitos, que fazem sua história social e podem tecer redes sociais e caminhos
de transformação da saúde coletiva.
Os
movimentos sociais: esse ator coletivo
Seguindo um pouco as reflexões de Melucci, ínsitas no
livro de Glória Gohn, intitulado “Teoria dos Movimentos Sociais”, publicação
das Edições Loyola, São Paulo, 1997, temos que os novos movimentos sociais
podem ser tomados também como categoria analítica - referência para pensarmos
as situações de luta coletiva hoje. Formas de ação coletiva que se tecem como
uma rede complexa de solidariedades e lutas sociais, rupturas e produção de
sentidos novos para o caminhar das gentes, os movimentos sociais lidam
permanentemente com organização de pessoas, tendo em vista mudanças sociais e,
para isso, realizam transformações subjetivas e objetivas nesse percurso. O
princípio de comunidade, essa esfera do mundo de vida, se enfrenta com a esfera
institucional e estatal, na intenção de ampliar os direitos sociais e alargar
as políticas públicas na direção de mudanças estruturais a cada vez mais
profundas.
Pensar em educação popular em saúde, nessa
perspectiva, é se colocar do ponto de vista popular para fazer da saúde um
direito que se efetiva nas práticas sociais.
O caminho da organização e da luta popular, portanto,
é onde tecemos nossas relações com a população. Assim é que na luta das classes
populares por seus direitos sociais, não se pode esquecer que o conjunto de
idéias, o mundo de representações e saberes que os movimentos sociais lidam possuem
movimento e, na prática conjunta é que se vai tecendo esse pensamento e esse sentimento do mundo.
Buscar os sentidos que os grupos e movimentos sociais
estão produzindo no seu percurso de luta pelo direito à saúde envolve,
portanto, um campo de diálogo e de solidariedade complexo, onde as pessoas
desenvolvem aprendizagens importantes. Aprendizagens que devem interessar às tarefas
da saúde e seus profissionais, tanto quanto a população que, nesse percurso
educativo, deixa de ser um objeto das ações do poder dominante e passa a ser
sujeito histórico, capaz de mudar rumos da vida coletiva.
Trilhas de seguir: como são elas?
Vimos até aqui que fazer educação é um ato
intencional: exige que se saiba em que direção queremos seguir e que tipo de
sujeito humano estamos ajudando a formar. Aqui uma historinha de Eduardo
Galeano nos ensina algo precioso. Alguém lhe perguntava, ao falar de luta
popular e caminho de seguir, pra que servia a utopia - esse modelo de direção
que se deve ter -, se nunca a alcançamos. O escritor disse: serve pra caminhar.
Nossos objetivos servem pra caminhar, sim, e valem como processo de formação
dos sujeitos sociais - nós -, profissionais de saúde e população em processo de organização, que
passamos a construir saberes situados e transformadores das práticas sociais.
O educador Paulo Freire já situava como importante a
criação do novo – para ele, ensaio da esperança. E cuidava de observar que para
se criar o novo se tinha de problematizar
o futuro. Como seria isso?
Propondo os possíveis do sonho nos contextos da vida
social e da educação, Freire questionava a idéia de se ver o futuro como algo
fixo e inexorável, propondo, então, a pedagogia da esperança como esse abrir-se
humano ao novo que humaniza as formações sociais. Paulo Freire, em seu livro
“Pedagogia da Autonomia”, publicação da Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
assim se refere à necessidade de problematizar o futuro:
“Nego a desproblematização do futuro a que
sempre faço referência e que implica sua inexorabilidade. A desproblematização
do futuro, numa compreensão mecanicista da história, de direita ou esquerda,
leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da
esperança. É que, na inteligência mecanicista, portanto, determinista da
história o futuro é já sabido. A luta por um futuro já conhecido a priori
prescinde de esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de
que, é uma ruptura com a natureza humana, social e historicamente
constituindo-se. O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para
fazê-lo (FREIRE; 2000:56).
A
questão da criatividade nos caminhos da luta social envolve, pois, mudanças nos
paradigmas atuais de saúde, que são as referências que constroem o que se
considera ciência em uma época e, também, em termos de futuro, em uma afirmação
que o vê como passível de mudança. Na condição dos sujeitos que vivem na
modernidade, faz-se necessário fazer a crítica da ciência que tem se erigido
como um braço do capitalismo, nesta fase do capital mundializado. Quem faz
ciência, ao passar a ser uma peça na engrenagem dos mercados, deve acordar para
mudar a direção dessa história – e se a complexidade dos nossos problemas
sociais é grande, é preciso que se atue de modo conjunto, multidisciplinar, para
que nossa ação atinja as múltiplas dimensões da realidade.
Subjetividade no trabalho da medicina
social
Vejamos como podemos operar concretamente com essa
idéia de nos situarmos na relação com a
população como produtores de sentidos que sejam potentes para realizar
transformações.
Pensemos com as Cirandas da Vida, não como modelo de
ação, mas como lugar de problematizarmos o vivido para falarmos de modo prático
também.
No contexto da educação popular em saúde, trabalhamos
com problemas que a população considera como problemas de saúde (e que
incluem um trabalho sobre as determinantes sociais que causam a doença, como
moradia, transporte, educação, trabalho, saneamento básico, etc). Também,
podemos desenvolver potenciais individuais e coletivos, que promovam a saúde
– o que significa que podemos enfocar a saúde e não apenas a doença. Estes dois
âmbitos de ação são igualmente importantes e devem conectar-se intimamente.
Estamos a dizer, também, que o conhecimento que é
produzido sobre saúde, no percurso educativo que instauramos, é um saber situado - possui um contexto onde
ele nasce e se desenvolve: onde adquire sentido. Vimos de anotar que o saber
produzido na relação entre educadores em saúde e população é tecido na situação
de interação vivida pelos sujeitos que se educam, onde são construídos
permanentemente sentidos sobre o vivido.
Isso quer dizer que se temos um trabalho a fazer com a
desnutrição infantil em um bairro da periferia onde atuamos, por exemplo, seria
importante perceber que os modos de cuidar e de viver das famílias das crianças
daquele lugar vão compor um saber situado que construiremos sobre o problema.
Sabe-se que no mundo da vida popular a lógica do
individualismo costuma ser quebrada e a criança muitas vezes é parceira dos pais na luta pela vida – o
que faz com que a figura do pai e da mãe provedores, realizadores de pequenos e
atentos cuidados , no cotidiano das classes trabalhadoras – onde largas
parcelas estão atualmente estão em
crônico desemprego - em alguma medida,
se modifique.
Outro exemplo: estudo de diabetes em mulheres pobre,
em determinada cultura humana, mostrou que as medicações e as prescrições eram
relegadas e as pacientes não melhoravam; observou-se, ao levantar
problematizações dessa ordem em grupos, que elas se cuidavam menos que os
homens. Por não trabalharem fora (devido à dificuldade de emprego na meia
idade), as mulheres ficavam à disposição dos que trabalhavam fora para “botar o
almoço”, servi-los, enfim, sem que estes percebessem a necessidade de alguns
cuidados, horários e remédios serem cumpridos pela mulher que ficava no lar. A
lógica familiar que imperava levava as pessoas a repartirem encargos e, no caso
da mulher pobre que não trabalhava fora, o serviço de casa ficava todo sob sua
responsabilidade. Já os homens do lugar diziam: “primeiro eu” – e eram
respeitados nisso. Uma questão de gênero (a construção social do sexo e do
poder entre os sexos), pois, atravessa nossa prática, quando no trabalho com a
saúde coletiva. Como atuar em saúde coletiva sem dialogar e situar nossos
saberes nestes contextos culturais concretos?
Vemos
assim, que é como se víssemos aqui que uma abordagem nossa em saúde coletiva,
pois, deveria implicar um processo de “desnaturalização” progressiva das
categorias nosológicas. É como se devêssemos notar e considerar que onde
tínhamos natureza (organísmica) apenas, agora temos também relações de poder e
significados dados às vicissitudes do corpo. Isso não quer dizer que não exista
a positividade do saber da medicina e sua eficácia prática seja deixada de
lado, como se fosse pura ideologia ou eficácia simbólica. Apenas que
reconhecemos a natureza híbrida e composta, dialogal e situada do conhecimento
da saúde nos contextos da educação popular.
Esta compósita mistura – saber popular e científico –
nos leva à importância de lidarmos com grupos, valorando o princípio de
comunidade e sua participação na vida coletiva do lugar.
Como os grupos podem funcionar como
grupos-sujeito?
O estudo de Guatarri e Rolnix sobre a
contemporaneidade intitulado “Cartografias do Desejo” (1986), publicação da
Editora Vozes, Rio de Janeiro, detém-se sobre as micropolíticas do desejo, que
envolvem uma espécie de “colonização da subjetividade humana”. O capitalismo,
dessa maneira, não funcionaria apenas no registro dos valores de troca, mas
seria garantida sua permanência por meio de um controle de subjetivação.
Aponta, este estudo, que o capitalismo
mundial, em tempos de globalização, além de acontecer no plano econômico,
produz bens simbólicos e subjetividades (esse plano da interioridade das
pessoas), resultando também por fazer as relações sociais funcionarem de modo maquínico, serializado. A produção de
subjetividades, então, por acontecer como em uma linha de montagem, tentando
padronizar as pessoas, suas formas de conviver e ser, levando-as, em grande
medida, a aceitar padrões coisificantes nas relações humanas, que seria preciso
criticar e reinventar.
Relacionando-se com seu ambiente social,
a subjetividade, assim, seria composta essencialmente por um conjunto de afetos
cambiantes, que comporiam uma espécie de cartografia do desejo, que estaria em
circulação nos conjuntos sociais de diferentes formas. É que, embora circulando
no mundo social, a subjetividade é assumida e vivida por indivíduos em suas
existências particulares (GUATTAR/ROLNIX;1986).
Guatarri e Rolnix observam, pois, que o
capitalismo realiza, em escala mundial, uma sujeição que alcança as subjetividades;
essa sujeição acontece também por meio de uma modelização unificadora de gostos
e desejos. Essa espécie de economia subjetiva ocorreria, logo, em todos os
níveis do consumo: na verdade, o capitalismo produz subjetividades - modos de
ser do eu - e comportamento como em uma fábrica ou linha de montagem. Por haver
essa espécie de serialização, de maquinização,
coisificação das pessoas em sua forma de funcionamento social, nós temos
dificuldade de fazer a crítica do que a indústria cultural e a comunicação de
massas produzem de desumanização (exclusão e desigualdade) e que reafirma o
modelo concentrador de renda, que seria vital mudar.
É inegável, porém , que com a mesma força
com que o capital cultural se reproduz, também há formas de resistência humanizadoras.
Essa produção em série de subjetividades - que atua não mais apenas fabricando
“modos de ter e fazer”, mas também de “modos de ser e sentir” - pode ser
contestada. Daí que Guattari e Rolnix propõem o caminho da singularização como o modo de cada pessoa e grupo social fazer a
crítica do modelo coisificador vigente e buscar seguir os seus percursos
desejantes singulares nos seus grupos sociais.
Desconstruir, portanto, essa linha de
manipulação de subjetividades que incentiva a forma de funcionamento do capital
autoconservar-se implicaria, segundo os autores Guattari e Rolnix, tentar
formas de singularização existencial que ajudassem pessoas e grupos a construírem seus mundos, instaurarem seus
sonhos de humanização e, enfim, proclamar seu direito à singularidade em todos
os níveis de produção de sua diferença.
Sabemos que tanto os potenciais dos
grupos populares como o das pessoas, individualmente, devem emergir nos
percursos educativos, já que o saber que transforma, necessariamente, é situado
em condições específicas da vida social que se quer transformar.
Para esse conhecimento crítico vir a unir
as pessoas e suas capacidades, precisa romper com os processos de
homogeneização das subjetividades - essa modelização uniformizadora que
apassiva as pessoas. Os percursos de singularização são estes caminhos grupais
onde os sujeitos apostam na sua sensibilidade e criatividade, na sua
possibilidade de construir saberes conjuntos capazes de transformar realidades
de miséria e desigualdades.
Pode-se dizer, pois, que estamos a lidar,
nos percursos de educação popular e saúde, com transformações e subjetividades,
com reprodução (o que repetimos, o
que conservamos, preservamos de nossa memória coletiva) e resistência - o que mudamos por ser alienador e coisificador, em
uma palavra, desumanizador.
Dowbor
(1998), em seu livro “A produção Social”, da Editora Vozes, Rio de
Janeiro, nos convoca a refletir sobre globalização:
“Globalização constitui ao mesmo tempo uma
tendência dominante e uma dinâmica diferenciada. Por trás dessa desarticulação,
encontramos a dimensão espacial do descompasso entre a rapidez da evolução das
técnicas, e a relativa lentidão das transformações institucionais, gerando uma
ampla esfera econômica mundial sem controle ou regulação, e uma perda
generalizada de governabilidade no planeta (DOWBOR; 1983:31)
Por dentro desses processos que se dão em
nível internacional, relações de poder reproduzem o instituído, mas também acontecem
transformações, realiza-se resistências a esse processo desumanizador. Como?
Luta e transformação na
ação popular em saúde
Sabemos que atualmente ocorre uma
ampliação gigantesca da especulação financeira e da privatização dos mercados,
que agora abarcam os espaços da informação e da comunicação em escalada mundial.
As políticas públicas acabam, nesse
quadro, por se reduzirem a estratégias compensatórias de diminuição da pobreza
e contenção de reações a esse modelo concentrador de renda. Formam-se blocos de
empresas transnacionais que resultam por hierarquizar espaços sociais e acessos
a produções de bens econômicos e simbólicos. A lógica da concentração de
riquezas tenta perpassar a lógica da vida cultural de resistência.
Em meio a isso tudo, porém, “se abrem
novas dimensões para a inserção do indivíduo no processo de reprodução social,
permitindo talvez a reconstituição de um ser humano mais integrado” (DOWBOR;
1998:30). O vivido nos espaços locais - como a casa, a escola, a comunidade, as
experiências formadoras de ordem variada, incluindo as que lidam com a espiritualidade
-, tenta olhar o que se tem acumulado como “experiência de si mesmo”; tenta
rever o papel do Estado, a criação de novos espaços e os motivos de interação;
tenta alargar a produção de saberes de transformação e arrisca-se a tentar
repertórios de ações coletivas solidários.
Vivenciando esta ação municipal, na
prefeitura do Partido dos Trabalhadores, intitulada Cirandas da Vida, vimos
como seria importante buscar o repertório de ações coletivas, sua história, sua
pujante cultura de resistência – essa aprendizagem que o universo popular faz
em seu caminho. Um dos primeiros aprendizados que fizemos como coletivo foi
perceber que o motor social das mudanças não estava no sistema político
institucionalizado. Tendia-se a ver as mudanças no Estado como algo que
acontecia apenas por meio das instituições políticas formais, representativas e
isso reduzia nossa visão do que estava a acontecer. Perceber a necessidade de
autonomia da luta popular é uma face importante do nosso trabalho.
As mudanças na questão do feminino, por
exemplo, aconteceram e acontecem no espaço da vida privada e comunitária e são
capazes de irem modificando uma exploração instaurada por séculos e séculos.
Isso não significa que não haja aspectos da luta do feminino que aconteçam na esfera
institucional e estatal. Significa que nas Cirandas é importante transformar
situações particulares de reivindicações em caminhos de transformação das
políticas públicas.
Segundo Cohen e Arato (1992), a moderna
ação coletiva nos movimentos sociais parece pressupor o desenvolvimento da
autonomia do social e dos espaços políticos dentro da sociedade civil e da
sociedade política, que passam a serem vistos como construtores de novas
identidades, novos sujeitos menos desiguais. Aqui desfilam lutas étnicas,
feminicas e outras, que alcançam modificar o valor das pessoas e os
preconceitos sociais e, ainda, tentam garantir modificação junto às políticas
públicas.
Formas de agrupamentos e de vida
associativa, novas organizações e dos novos espaços sociais comunitários, na
verdade solidariedades complexas vão sendo criadas (como a socioeconomia
solidária, por exemplo) e, ao mesmo tempo, aperta-se o laço das reivindicações
e do diálogo das comunidades com a esfera pública institucional.
É
dessa forma que a ação popular em saúde migra das visões que enfatizavam apenas
os movimentos sociais - esse universo da ação coletiva – como mobilização de
recursos por grupos de interesse e de protesto comunais (como em Tilly;
1981:17). Chega-se, então, a admitir que, se há novas solidariedades que
resultam por conseguirem sua institucionalização (como, por exemplo, o direito
de creche, na luta feminista, ter sido associado ao direito do cidadão criança
e não mais a uma garantia da mulher trabalhadora de empresas capitalistas); há
a construção de novas identidades e demandas que possuem aspectos inegociáveis
nos processos associativos (como a da liberdade de vivenciar os aspectos
brincantes da vida, a de expressar-se nas linguagens da arte e a espiritualidade).
Construindo a cultura da educação em saúde
Assim, se as instituições políticas
formais representativas (como os sindicatos, as associações, os partidos
políticos, por exemplo) são importantes para garantir direitos, estes devem ser
embasados em uma cultura política que
comporte uma cultura da vida em sua inteireza – e nessa esfera, a saúde no contexto da educação popular tem
seu lugar fundamental. Como seriam estes pontos de luz no caminho de
refletir sobre a prática de transformar?
Transformar ao máximo o que tem um caráter de evento
em algo que “continua” no seio mesmo da prática cotidiana é uma desafiadora
proposta. O trabalho em saúde junto às classes populares se ergue em meio a
difíceis situações de exclusão e pobreza, que se reproduzem ao lado de enormes
concentrações de renda; os séculos de mudez popular trazem para nós uma herança
de silenciamentos que apaga em muito a voz dos grupos populares. E, ainda, em
grande medida, as classes trabalhadoras têm trazido um desejo emergencial de
viabilização da sobrevivência e ascensão social, no sentido estrito, que não
conseguimos responder e, então, nossas ações mais arrojadas e coerentes de
resistência cultural e transformação social ficam toldadas.
Uma cultura da educação em saúde deveria, pois, ser
uma cultura de transformação e de mudança de paradigmas: seria onde o
bio-médico acrescentaria a assunção da dimensão social da medicina. Nesse
contexto, temos de problematizar o que nos é dado em uma moldura de
naturalidade e imutabildiade. Detenhamo-nos nesse aspecto no contexto de uma
cultura da educação em saúde. .
Para pensar um pouco mais nessa perspectiva, articularemos
uma idéia de sujeito, experiência,
autoralidade, história, diálogo e produção de sentidos como lugar de perguntas ou de uma fala e
escuta aos sujeitos sociais com os quais trabalhamos em saúde.
Experiência
e narrativa como tecido onde se tece a ação educativa
As abordagens do humano ressentem-se de um movimento
pendular característico: ora repetem uma espécie de sociologismo, considerando
apenas aspectos políticos graúdos, sobretudo as relações da educação com o
Estado e suas conformações atuais, ora vão ter em um lugar onde o psicologismo
olha os acontecimentos do tempo como uma avestruz: enterrando a cabeça na terra
para não se aperceber.
Para nós, o ato de falar do humano incorpora a prática
social das pessoas, em seus aspectos históricos, políticos e econômicos, mas
também deve abarcar o universo do mundo de vida, as interações e, inclusive, a
espiritualidade de todos nós.
Por estarmos no que se pode chamar modernidade, a
problemática das linguagens nos atravessa. Deveremos, portanto, ter uma idéia
do que consideramos narratividade, como ato que é preservação e, também,
criação. Podemos dizer, em princípio, que narrar é o lugar de problematizar
os sentidos coletivos; é lugar de pensar os possíveis, o que temos como projeto
de futuro. É, pois, também um jeito de
perguntar como a história pode continuar, acrescentaria Walter Benjamim.
Nas palavras de Walter Benjamin:
“O
depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e
de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva,
ligada a um trabalho e um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e
de linguagem (BENJAMIN; 1944:11).
Antigamente, o fato de se viver juntos experiências
comunitárias, trazia mais de perto certa proximidade entre vida e palavra. O
fato de viverem juntos, coletivamente, uma experiência que era trabalho e ao
mesmo tempo vida repartida dava certa comunidade de sentidos, de valores às
pessoas, uma unidade mais evidente.
Os sentidos pareciam dados, em lugares onde havia
formas comunitárias de trabalho, pela prática de vida. Hoje, temos de buscar
esses sentidos partilhados; eles se acham espalhados, em meio a outros sentidos
dados pela indústria de massas, pela mídia televisiva, pelo acentuado processo
de consumismo nesse estágio de mundialização do capital em que estamos.
Haveria, pois, uma relação sempre dialética, entre a prática social e o que os
sujeitos dizem dela. Quer dizer, certa disjunção, não coincidência e ao mesmo
tempo certa complementaridade entre narrativa e vida concreta. Algumas coisas
que a gente vive podem ser traduzidas no que se diz; outras, sobram “não
cabem na palavra”, como se poderia dizer. Na verdade, a ordem do ponto (da letra, da escrita do que se
quer dizer sobre a vida) é diferente da ordem do onto (da existência mesma).
Isso significa que teríamos de garimpar o que se quer
dizer realmente e que interessa ao nosso crescimento como pessoa e
coletividade, em meio a uma porção de outros sentidos que nos coisificam e
desumanizam. Isso quer dizer também que temos de articular experiência como
tradição e como lugar de problematizar o futuro: como desejo de preservar
coisas preciosas para nós, em nossa vida pessoa e social e como modo de
perguntar o que é importante continuar ou mudar no caminho que vínhamos
trilhando.
As situações de educação em saúde seriam, portanto,
lugar de problematizar e escolher sentidos para nossa vida pessoal e coletiva. A partir disso, como podemos apoiar e ajudar a
organizar redes sociais – essa forma de solidariedade complexa, que tenta dar
conta da complexidade dos problemas a enfrentar?
Primeiro: falamos de problematização porque os sentidos
que damos às nossas experiências não estão já prontos, devem ser buscados pelo
coletivo, mas sabendo-se que há uma porção deles que “naturalizamos”, nos
acostumamos a eles e nem percebemos o quanto eles nos reduzem a “coisa” e
atrofiam a inteireza que temos como seres humanos.
Dissemos então que precisamos construir uma espécie de
cultura da educação em saúde, onde possamos nos posicionar
como sujeitos, capazes de produzir sentidos para a vida imaginada, e não apenas
para a repetição do que já não se suporta; uma cultura que abarque o ser visto de modo multidimensional e não
apenas reafirme o ter dentro de
modelos tão desiguais; que seja capaz de perceber os fundamentos emocionais e
espirituais de nosso ser cultural.
Será importante que uma cultura da educação em saúde como
cultura da vida, possa ser pensada comportando uma visão de narrativa que seja
estática, que se mova na construção de novos mundos e perspectivas; devemos ter
claro que a linguagem não é o mesmo que a vida, que é a tentativa da tradução
de algo de uma ordem em outra. Ocorre uma não unidade entre prática social e
sentido; os sentidos postos em circulação na vida estão em muito adulterando
nossa humanidade. Por isso faz-se urgente problematizar o sentido que estamos
dando a nossas experiências, colocando-nos também como seres mais inteiros. E
situando-nos, a nós, educadores, como sujeitos aprendentes disso.
Presencialidade e expressividade
Para tanto uma espécie de pedagogia da voz, como
poderíamos chamar, deveria erguer-se. Como ajuda-nos Paul Zumthor, ao trabalhar
com a idéia de performance (que é a
oralidade, presença das pessoas uma ante outra; “falas em interação”), a voz
traz o existir humano em sua presença e é também o clamor do que não
conseguimos dizer por meio da letra, da escrita. A partir dessa idéia de
perfomance, desenvolvemos a de presencialidade, que é esse importante trabalho
dos seres humanos em presença,
educando-se e valorizando a “fala” que trazem, em suas expansões artísticas e
expressões variadas, compondo uma cultura que traz a riqueza do sujeito (em sua
inteireza) e das interações locais.
Aqui enfatizamos voz
e presença em seu caráter de “construção” - algo que se cria enquanto
sentido, no momento mesmo em que vai sendo dito. Fala que não é apenas memória,
mas desafio de atuar no presente construindo novos possíveis e novas
significações partilhadas. Assim: quando dizemos algo, podemos nos ouvir agora
e, de repente, podemos produzir e percebermos sentidos novos para nossa
experiência.
Aqui deve
ficar claro, portanto, o espaço da oralidade, enquanto dizer que tem seu valor,
independente da escrita que se vai fazer a partir, com ou em diálogo com esse
falar. As rodas de conversas, os agrupamentos e ações que utilizam formas de
linguagens várias são muito caros a nós, educadores em saúde.
A socialidade define um conjunto de mundos vividos e é
ela que queremos tocar: é uma reflexão profunda sobre o humano nos tempos de
hoje que estamos a propor – e ela se dá por meio de caminhos de ação organizativa. Nessa ida, a experiência coletiva vai se formando e
reinventando por meio do fazer prático dos caminhos.
Saberes
e amor
Considerar os aspectos econômicos, sociais e culturais
que fazem a saúde da população e seus grupos não do ponto de vista objetivo
apenas, mas captar a dimensão subjetiva deles, o “modo como são vividos”, os variados modos de se emocionar das
culturas, no dizer de Maturana, seria fundamental. Na verdade, na base da
educação há o amor: substrato de
todo ato educativo e intencional; a quem interessa tornar o amor uma palavra
banal e gasta, redutora e estéril, ao invés de fertilizadora de diálogos, de
imagens de futuro e passado partilhados, referências profundas de um humano
menos aviltado em nós?
Como uma pessoa vive sua separação e cria vários
filhos com um salário mínimo é diferente de outra; os sentidos que darão
a essa experiência terão pontos de contato e terão a variabilidade imensa do
humano, aquilo que faz com que sejamos únicos no mundo. Essa fala mais profunda
nos traz um sujeito em toda sua inteireza; um sujeito que se emociona, que é
fundado estruturalmente pelo modo como ama. O falar e o sentir que trazemos,
portanto, vão nos levar a buscar também o agir que temos palmilhado;
pensarmo-nos assim é considerarmos educandos e educadores um ser complexo e
menos fragmentado. Quando nos situamos inteiros, buscamos construir percursos
em que estamos lutando pela inteireza de todos os sujeitos.
Sabemos as pessoas vivem às voltas com grandes dilemas
de sobrevivência. Também o modo como os jovens e adultos estão a viver suas
buscas de completude no amor; a angústia de construir um presente que “se
improvisa” como eles dizem, entre fomes e faltas; o olhar dos outros dentro de
nós, muitas vezes de um modo duro; o desafio de construir a esperança em um
país que não tem já pronto um projeto de futuro para os filhos das camadas
empobrecidas da população; a precisão de entender-se com o mundo doméstico onde
se convive com o diferente, tudo isto não poucas vezes adquire os tons sombrios
da desistência, do desamor, da violência e do desamparo. Embora o sofrimento
seja uma realidade para os alunos é
preciso que o encontro que proporcionamos entre grupos e intra-grupos seja
lugar de produzir sentido sobre nossas experiências. E que estas experiências
contem de um sujeito multidimensional: um sujeito que precisa perceber e
refletir sobre seu agir, seu pensar e seu sentir como dimensões que estão
relacionadas. Que a vida falada seja a que abarca tudo o que nos faz sujeitos
amorosos e capazes de sonhar (as simbolizações do nosso ser cultural por
inteiro).
Podemos perguntar agora, com mais propriedade, com que
idéia de sujeito estamos trabalhando.
Para
a idéia de um sujeito mais inteiro
Há uma dimensão sensível onde nosso corpo físico e
pensante, simbólico está atuante , que deve estar presente nos atos ou
ensaios de aprender e que envolve esse “dar sentido às experiências vividas”. A
experiência traz, portanto, uma dimensão prática (de ação realizada), uma
dimensão sensível e uma dimensão de saber intelectual e afetivo-moral. Tornando
simples: um fazer, um sentir e um pensar que se entrelaçam e nos trazem um
sujeito em toda a sua inteireza.
Contudo, será que consideramos, de fato, que toda
produção de conhecimento é também produção simbólica? O pensamento vai se
erguendo, quando se é criança, como uma lógica da ação; quando nos tornamos
jovens e adultos o pensamento se desenvolve, alcançando níveis mais abstratos,
a ponto de podermos pensar de um modo bastante complexo sobre realidades
imaginadas. Sabemos que o conhecimento se constrói com a ação do sujeito no
mundo; uma ação em que também o simbólico está envolvido; simbólico como uma
lógica dos afetos, aonde a representação que vamos tecendo sobre as coisas se
junta ao nosso modo de apropriarmo-nos de outros lados mais objetivos da
realidade.
Pretendemos, pois, sugerir que construir uma cultura
da educação exige que se busque refletir sobre os sentidos que estamos
produzindo sobre nossas vidas junto às situações de aprendizagem da luta
coletiva. Essa discussão sobre os sentidos que estamos dando às nossas
experiências exige que reflitamos sobre:
- que idéia de
sujeito temos em vista: um sujeito multidimensional? Se sabemos que o sujeito
tem a dimensão do corpo; a desejante (que envolve a dinâmica dos afetos e da
moral) e a da inteligência (além da síntese dinâmica e da direção deste tripé,
que chamamos espiritualidade), será que nossa produção de sentidos em sala de
aula tem envolvido as experiências das pessoas em todos estes âmbitos da
vida? Será que temos pensado os sujeitos
que aprendem em toda a sua inteireza?
Façamos um breve parêntese. Costumeiramente a gente
tem feito assim: amor e coisas de afeto é com nossa família ou outros amores;
qualquer transcendência ou pergunta sobre o destino, o ser e a dor é
espiritualidade, portanto é apenas nas esferas religiosas que vamos
respondê-las; as questões da ética são do mundo da política; as da estética,
essa fome de arte das pessoas, são coisas da cultura, de grupos de bairro e
lazer; enfim, a gente vai botando essas “caixinhas” fora da sala de aula e
erigindo um saber esvaziado de sentidos. Então, quando fazemos isso, não
estamos a mutilar um sujeito, que deveria ser tomado em sua inteireza? Por que
expulsar da escola aspectos que vêem o humano apenas como “um sujeito que
estuda para dar conta de arrumar emprego e servir a um mercado do jeito que ele
se apresenta hoje”?
Veja, em um estudo que fizemos, vimos que, para as
classes populares, trabalho é exploração e sacrifício; por isso se retira toda
a gratificação possível do mundo do trabalho e desloca-se para o consumo. Nesse
quadro, também escolarização passa a ser essencialmente preparação para esse
mercado; daí, então, se reduz a complexidade do humano a esse aspecto,
retirando-se tudo o que se poderia fazê-lo mais completo, como o corpo, a
afetividade, a ética, a estética, a espiritualidade, a moral, em nome de um
“aprender para o mercado de trabalho” que mutila o sujeito e reafirma o modo de
funcionamento do capital da forma como ele acontece hoje.
Há outro aspecto que decorre dessa mutilação e
compartimentalização do ser: muitas vezes se quer discutir sobre cultura,
retirando-se nossas formas de nos emocionarmos, nossos afetos e sentimentos do
próprio terreno de vida onde eles medram, onde eles florescem, ainda que com
suas ervas daninhas. Muitas vezes pensamos, mesmo, que cultura é apenas ver um
filme, uma peça de teatro, algo que alguém faz e a gente consome; colocamo-nos
como objetos de toda essa rede simbólica que comenta a vida, tece significados
e compõe metáforas sobre o que temos vivido e ansiado. Se cultura envolve estes
produtos, o processo destas construções também é importante; todos temos nossa
artisticidade e é preciso que possamos devolver às pessoas seu valor como
criadores de uma cultura da educação, uma cultura que pede que percebamos a
vida como um todo e as múltiplas produções de sentidos e atos que damos a ela
(quer tenhamos concretizado isto em obras ou não), como elemento cultural.
Cultivar as vivências sensíveis, em uma perspectiva
que atinja nosso cotidiano como educadores e educadoras parece-nos dever
envolver uma idéia de sujeito mais ampla e, também, uma idéia de encontro em
saúde como lugar de produzir sentido para as experiências de sofrimento e luta,
dor e esperanças, doença e saúde que vivemos. Isso exige em um contexto que
considere como fundante, nessa fala individual e coletiva, as histórias de cada
um e dos grupos onde se vive.
Pinçamos aqui outro aspecto importante no modo como se
pode pensar essa fala-e-escuta da experiência do outro e dos seus grupos: o caráter dialogal dessa nossa “busca” de
escuta às experiências. O diálogo pressupõe que tenhamos uma idéia de
conhecimento que inclui o saber como algo que é produzido por todo o corpo
social e que cada pessoa recompõe quando aprende.
Daí é que decorre nossa proposta de trabalhar com a história da pessoa, dos
grupos e aspectos da cultura local, em suas linguagens expressivas, também para
exercitar a construção da autoralidade dos que vivem percursos educativos.
História
e Autoralidade
Estamos
propondo agora pensarmo-nos como pessoas que são autores de suas falas
individuais e coletivas: como organizar essa prática de buscar a experiência
dos grupos com quem lutamos?
Pensar educação, hoje, portanto, parece-nos estar
junto da tarefa necessária de considerar como estamos vivendo as realidades
sócio-políticas em sua relação com nosso mundo da vida.
Nas Cirandas da Vida, por trabalharmos com as linguagens
da população, podemos dizer que é importante no falar e escutar das
experiências populares, trazermos o campo expressivo do outro, que não só se
diz oralmente (falando), mas desenhando, pintando, cantando, dramatizando,
enfim, utiliza sua riqueza expressiva de um modo mais abrangente. Observar o
trânsito e a construção do pensamento, ao fazer sua viagem de uma linguagem
para outra; olhar como podemos falar com as imagens da arte, que trazem
extratos do inconsciente profundo das pessoas e das culturas humanas; ver como
textos se transmudam em atos no fazer
artístico, atos que se partilha com outras pessoas e que também são produções
de significados novos em enfrentamento com os antigos; tudo isso nos deve mover
para pensar que ser autor das próprias falas e significados é uma forma de dar
um lugar de sujeito ao outro, de proporcionar que ele “tome mais de conta” e
tenha mais consciência de sua história pessoal e coletiva. Isso é um modo de
humanização, segundo percebemos.
Continuemos: há, pois, um inegável vínculo entre
conhecimento e alteridade. Todo conhecimento é conhecimento do Outro; ele se dá
na malha dos afetos que construímos ao imaginar ou experienciar concretamente
as coisas do mundo.
Nossa ótica, porém, está sociocentricamente armada;
quer dizer, temos dificuldade de “pedir um pouquinho emprestado os olhos dos
outros para enxergar como eles olham”; vemos as coisas sem nos “colocar no
lugar do outro”. Isso exige um trabalho
sobre o falar e o escutar que envolve uma leitura do que seria o campo expressivo do outro e de como estamos
tecendo caminhos para apreendê-lo.
Linguagens: o campo expressivo do Outro
Buscar compor um campo dialógico - espaço de
recomposição de memórias e de gestação do novo - esse um desafio importante que
compõe uma cultura da saúde como cultura da vida.
Há, contudo, falas com “materiais emprestados”, que
não têm o mesmo valor para os sujeitos; são ecos do que se diz sobre eles,
prenhes de ideologia e ante os quais as pessoas não se detiveram para examinar
crítica e criativamente. Seria importante, pois, um movimento de criticização
do vivido.
A aprendizagem é um processo de produção de sentidos
que se significa familiar e socialmente, ainda nos apropriemos individualmente
do que se está a aprender. No aprender se elabora uma apropriação objetivante e
uma elaboração subjetivante. A elaboração objetivante requer dados, construções
hipotéticas, raciocínios abstratos, generalizações, classificações e ordenações
mais ou menos complexas; em seus procedimentos, opera-se com as informações sobre as coisas. Isso seria diferente
de buscarmos nossa experiência com o
que está sendo estudado e, assim chegarmos a ir tecendo um processo de
formação, que é diferente de adquirir a mera informação. Na verdade, formação é
algo muito maior que informação e exige um demorado experienciar as realidades
pensadas e sentidas; e une reflexão, também com prática social.
Aqui se dá um lugar especial a uma “leitura do
vivido”, em uma espécie de exercício de meta-linguagem; assim: vive-se ou se
viveu coisas e se vai refletir sobre elas, distanciando-se para melhor
pensá-las. A atribuição simbólica pessoal de significado ao que vai sendo
trabalhado como experiência traz um sujeito mais inteiro, que evoca sua
percepção sensível (sentimentos, afetos, imagens) no que está a ser elaborado
como pensamento.
Produção
de sentidos
Como
faremos, então, para realizar essa assunção
do sujeito, essa “chamada” para que nossa população e grupos-sujeito se
situem não como objetos, mas como produtores dos significados para seus
dizeres, suas vidas?
Há uma porção de sentidos postos sobre os sujeitos e
que são como aquela primeira água suja de uma torneira que se custa a abrir e
sai um tanto de ferrugem. É que a indústria cultural faz o que Félix Guattari e
Rolnix chamam de homogeneização das
subjetividades (querem “todo mundo igualzinho” para consumir o que ela
manda); a mídia vai jogando, então, no mercado não só produtos, mas junto com
eles comportamentos conforme lhe interessa para vender mais e aumentar mais o
consumo, sem se preocupar com razões éticas; como também a cultura televisiva
fazendo seu “servicinho” de apagar as singularidades culturais, dos grupos, das
pessoas, seus modos de dar sentido ao vivido, que precisam, por isso, serem
problematizados, revistos, em salas de aula, assim se vai construindo uma
cultura da educação como possibilidade de resistência.
Não se pode esquecer que, se o Estado se reduz e a
ética obedece mais ao mercado, que vende e quer vender indiscriminadamente,
reafirma-se, vinca-se o ter de um modo que expropria as pessoas de sua
humanidade. Pasolini afirma, até, que o consumo está causando uma espécie de
mutação na alma humana.
Realiza-se, assim, nesse quadro que estamos a esboçar
da vida das populações com as quais trabalhamos em saúde, também apagamentos
sobre a memória das nossas gentes; seus núcleos de vitalidade, criatividade são
extirpados em nome de uma lógica capitalista onde o ter mais vai anulando e neutralizando as outras dimensões do ser.
As memórias das populações, advindas de extratos de
experiências variadíssimas são pulverizadas, caladas, sonegados seus espaços de
se dizerem, de construir sentidos e ações a partir delas, para os tempos de
agora.
É que, na modernidade, vive-se instantâneos;
fragmentações em excesso; há uma dificuldade de qualquer reconstrução das
histórias das pessoas, dos grupos e das culturas, em suas singularidades.
Parece que a vinculação da prática de vida com o sentido que damos ao vivido se
esgarça. Walter Benjamim fala que seria importante “fazer uma experiência com o
passado”, para retomar os núcleos profundos das histórias, nossa força de
contá-las e continuar de um novo jeito.
Trocando em
miúdos: criticizar o que a indústria cultural “joga” para nós como verdade,
também buscar na memória o que pode ser reconstituído nos grupo e vida popular;
e trabalhar o que se tem posto sobre verdade “sobre nós”, pondo isso em tensão
com o que se pensa disso realmente, o que se sente e vive “por dentro” do que
se vai vendendo como “imagem” sobre nós, é construir uma cultura da educação
como a vida que nos interessa fazer valer. Não podemos esquecer que estamos a tentar nos mover no território
comunitário onde estão se construindo redes e grupos-sujeito, parcerias e ações
coletivas organizadas cooperativamente com a população.
Seria nesse contexto que brotariam os novos sentidos
para as lutas populares; seria nestes contextos que escutar é algo que devolve
ao outro o papel de construtor de significações importantes para suas vidas e
caminhos.
Acordando os
possíveis: o sonho do que se pode ser também em nós
Outro aspecto a considerar: para acordar os possíveis
e mantermo-nos construindo as novas realidades do futuro com os jovens e
adultos com os quais trabalhamos: é preciso buscar aprendermos com as lições do
caminho. Podemos nos propor, portanto, a pensar nossa ação conjunta, refletindo
sobre o que tem nos movido nos nossos percursos educativos e qual o sentido que
temos dado, nós também, às nossas experiências.
Uma espécie de pedagogia da voz e da pergunta, como
vimos de dizer, pode nos ajudar a colher os frutos que temos plantado em nosso
cotidiano, flagrando, assim, onde nossa experiência, feito retratos da vida em
movimento, possa ser trazida como uma fruta, para alimento coletivo. Pode-se
dizer que faremos desse encontro entre nós, também um momento de colocarmos o
que temos achado precioso no nosso matulão
(essa simbólica sacola de lembranças e de coisas úteis que os viandantes
carregam).
Sugestão: como desafio primeiro poderíamos tentar
trabalhar as situações-limite: as que a comunidade, em seus grupos, estaria
mais propensa a refletir, a querer modificar. A seguir, se poderia trabalhar as
situações impulsionadoras (que funcionam ajudando a população a caminhar), em
que história elas brotaram, que superações parecem fazer. Na verdade
intentaríamos puxar das águas da memória as histórias que os grupos trazem do
vivido, com suas sombras e margens, veredas e fulgores.
Já que falamos da voz dos sujeitos, o que seriam as
perguntas que deveríamos tecer, em meio a esse movimento de escuta? Que
perguntas poderíamos fazer dentro das histórias que as pessoas estarão a
narrar? :
- as perguntas
são eixos de encaminhamentos que nos movem; as perguntas podem estar
inconscientes; pode-se, mesmo, não se estar a ouvi-las ou a dialogar com elas;
- as perguntas
trazidas pelas histórias podem envolver nossa biografia, que capta as dimensões
subjetivas do vivido e, também, o movimento do pensamento que se está a
organizar, na prática concreta de todos nós;
- para construirmos um pensamento coletivo será
importante repartirmos as perguntas e as histórias do caminho que percorremos
juntos. As perguntas vindas com as histórias podem funcionar como leituras da
prática coletiva de vida (dos alunos e nossas);
- as perguntas vindas com os contextos do mundo de
vida são também discurso interior que, ao ser verbalizado, toma certo caráter
de organização do mundo interno, em seu movimento de compreensão do vivido;
- a socialização do que vivemos funciona como base da
construção reflexiva do grupo: é movimento de suspensão crítica da prática de
vida, base de todo saber e deve voltar a ela, transformando-a;
- refletir criticamente sobre uma situação social
requer buscarmos as conexões dos pequenos acontecimentos cotidianos com as
situações outras que envolvem o mundo social maior; a idéia de totalidade
implica esse movimento dialético que vai da parte para o todo e vice-versa;
como quando jogamos pedrinhas em um lago, cada círculo vai “chamando outro”
maior. Paulo Freire nomeava de práxis
a esse movimento de desvelar o mundo, que se dá da prática (ação) para a teoria
(reflexão), e desta volta à prática novamente. A construção do diálogo nos
grupos sociais pode se voltar para esse grande levantamento das problemáticas
vividas pelas pessoas das comunidades em seu cotidiano e que se precisa
trabalhar enquanto prática de produção de sentido nesse caminhar juntos.
E
nós, educadores em saúde ?
Constelação é uma prática de escrita que Walter
Benjamin produz, na análise de fenômenos que envolvem a dimensão subjetiva e os
complexos objetos e realidades sociais.
Pensamos que construir uma cultura da educação em
saúde como cultura da vida, como dissemos, seria também debruçarmo-nos no nosso
caminho como profissionais da saúde que atuam com a dimensão educativa de sua
prática. Esse exercício de autoralidade poderia ser visto também como nosso; é
um modo de dar sentido à nossa experiência e aos contextos de nossa prática
social individual e coletiva. Isso exige movermo-nos na reflexão crítica sobre
nossos campos expressivos e dialógicos também; examinarmos nossa escuta e fala
com os outros do nosso caminho e, em especial, as populações com quem
trabalhamos em saúde. Comecemos com este mote primeiro.
Muita paz. Ângela Linhares
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