TEM SEMPRE UM DIA EM QUE A CASA CAI!


Por Thamara Fernandes



As estruturas da certeza habitam o plano dos discursos, carregadas de concretude e solidez. Mas... A erosão dos tempos algumas vezes nos surpreende: derruba alguns pilares e corrompe paredes antes aparentemente intransponíveis, até que a “casa” caia.

Tem sido exatamente assim o processo do Hotel da Loucura e seus efeitos naqueles que, de alguma forma, penetraram seus espaços. Embora conste em meus registros históricos um contato anterior com seus célebres atores (arquitetos, engenheiros e pedreiros), o primeiro OcupaNise, evento que inaugurou o Hotel da Loucura (em julho de 2012), foi um marco importante, que me reconectou com os alicerces.

Nas profundidades do terreno, a iniciativa, fincada em bases objetivamente transcendentais, trouxe para o plano da realidade algo que ruísse com alguns muros ideológicos, projetados nas divisórias de cimento de uma instituição psiquiátrica. Afinal, quando se podia imaginar o livre trânsito entre os “de dentro” e os “de fora” do hospício, para que todos juntos pudessem aprender algo sobre a vida e o viver?

A atitude de artistas, cuidadores, educadores e gestores carregarem suas malas para o interior de uma enfermaria desativada, colorida e transformada por meio de rituais artístico-culturais, veio a garantir em três semanas a circulação diária de pessoas sem credenciais institucionais. Tal efeito pôde ser visto ao longo de um ano, conferido no segundo OcupaNise (julho de 2013) e reafirmado até a sua terceira edição (setembro de 2014).

Eis aí o resultado claro, direto e indiscutível dos efeitos essenciais de uma proposta experimentada e praticada no ambiente que veio a se tornar a sede da UPAC – Universidade Popular de Arte e Ciência. O manifesto desta rede colaborativa de atuação e formação afetiva, pautada no cuidado coletivo de cunho político, endossou a aplicação de seus princípios do “Engenho de Dentro pra fora” nos últimos dois anos, em diversas cidades e estados brasileiros, expandindo-se para além das fronteiras tupiniquins.

A construção compartilhada, sustentada a princípio pelos visionários irmãos de alma Vítor Pordeus, Ray Lima, Junio Santos, Verinha Dantas, Edu Viola e tantos outros, que também me adotaram como parte da grande família, cresce indefinidamente em suas bordas flexíveis, garantindo que o conhecimento se ancore nas tradições culturais e que sua arte extravase os sentidos espirituais de nossas práticas cotidianas, quer no campo profissional quanto nas relações pessoais.

Nesta perspectiva, o terreno da convivência é o reduto de solo mais fértil e possível. Conviver com a loucura é reconhecer os limites da sanidade e entrar em contato com as forças que infelizmente ainda jogamos fora, despejando na sociedade como mero entulho (como o dito do bebê lançado junto com a água suja da banheira, após o banho).

Como exemplo, o surto nos convoca ao cuidado e acolhimento, porém, se considerarmos apenas os aparatos técnicos ensinados nas escolas e praticados nas organizações de saúde pública e privada, recorreremos imediatamente ao silenciamento ou contenção química das tarjas pretas, sem sequer validar a resposta que ele (o surto) simboliza. Ou seja, o que reflete a dinâmica da relação costuma ser tratado à maneira “abafa o caso” e viabiliza a interrupção do fluxo na comunicação.

O que temos aprendido no contato íntimo entre os frequentadores (ocasionais ou não) do Hotel da Loucura, durante e depois dos eventos OcupaNise, perpassa o suportar do surto, escutando o surtado, lançando mão do afeto para acolher o que ele comunica, respeitando o processo e, finalmente, transformando a relação daqueles que fazem parte, no exato momento em que acontece e daí em diante...

Os ilustres clientes da inusitada hospedaria têm vivido isso de diferentes modos desde a sua fundação, de acordo com quem se dispõe a conviver. Geane, Miriam, Pelezinho e Reginaldo são apenas algumas das celebridades emblemáticas que assumem novos papéis a cada encontro, em seus múltiplos personagens de essência única.

O teatro foi colocado como caminho; a arte como possibilidade. O ritual foi e é sempre o processo. O lema “Loucura sim, mas tem seu método” ressalta exatamente isto. E quem quiser saber, que participe! A experiência nunca há de ser teórica.

A prática nos leva à transformação imediata, cirúrgica, em tempo real. Quem constrói no agora eterniza a sua energia naquilo que vem depois. Portanto, quanto mais força positiva for aplicada em nossos atos de hoje, mais fracas serão as energias de cárcere que restam de outrora.

Nossos loucos emancipados (clientes e frequentadores do Hotel da Loucura), que participaram em responsabilidade conjunta de todas as edições do evento tão citado e revolucionário, desde então carregam em suas vidas luzes materializadas, imagens reconstruídas e comportamentos de cidadãos palpáveis. São dados concretos de uma nova estrutura para estas pessoas.

Oxalá a letra esteja certa: tem sempre um dia em que a casa cai...

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