Controle Social
ABREU, M. M. A relação entre o Estado e a sociedade civil:
a questão dos conselhos de direitos e a participação do serviço social.
Serviço Social & Movimento Social, 1(1): 61- 76, jul.-dez., 1999. Maria Valéria Costa Correia
A expressão ‘controle
social’ tem origem na sociologia. De forma geral é empregada para
designar os mecanismos que estabelecem a ordem social disciplinando a sociedade
e submetendo os indivíduos a determinados padrões sociais e princípios morais.
Assim sendo, assegura a conformidade de comportamento dos indivíduos a um
conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados. Mannheim (1971, p.
178) a define como o “conjunto de métodos pelos quais a sociedade influencia o
comportamento humano, tendo em vista manter determinada ordem”.
Na teoria política, o significado de ‘controle
social’ é ambíguo, podendo ser concebido em sentidos diferentes a
partir de concepções de Estado e de sociedade
civil distintas.
Tanto é empregado para designar o controle do Estado sobre a sociedade quanto
para designar o controle da sociedade (ou de setores organizados na sociedade)
sobre as ações do Estado.
Nos clássicos da política, expoentes do
contratualismo moderno, Hobbes, Locke e Rousseau, jusnaturalistas cujos
fundamentos estão guiados pela razão abstrata – o ponto em comum é o conceito
de sociedade civil como
sinônimo de sociedade política contraposta ao estado de natureza, em que o
Estado é a instância que preserva a organização da sociedade, a partir de um
contrato social –, diferem quanto à concepção de ‘contrato social’ que funda o
Estado.
Hobbes atribuiu ao Estado poder absoluto
de controlar os membros da sociedade, os quais lhe entregariam sua liberdade e
se tornariam voluntariamente seus ‘súditos’ para acabar com a guerra de todos
contra todos e para garantir a segurança e a posse da propriedade.
Locke limitou o poder do Estado à
garantia dos direitos naturais à vida, à liberdade e, principalmente, à
propriedade. O ‘povo’ – que, para Locke, era a sociedade dos proprietários –
mantém o controle sobre o poder supremo civil, que é o legislativo, no sentido
de que este cumpra o dever que lhe foi confiado: a defesa e a garantia da
propriedade.
Em toda a obra de Rousseau – O Contrato
Social – perpassa a idéia do poder pertencente ao povo e/ou sob seu controle. O
autor defendeu o governo republicano com legitimidade e sob controle do povo;
considerava necessária uma grande vigilância em relação ao executivo, por sua
tendência a agir contra a autoridade soberana (povo, vontade geral).
Nesta perspectiva, o ‘controle
social’ é do povo sobre o Estado para a garantia da soberania
popular. Para algumas análises marxistas, “a burguesia tem no Estado, enquanto
órgão de dominação de classe por excelência, o aparato privilegiado no
exercício do controle
social” (Iamamoto & Carvalho, 1988, p. 108).
Na economia capitalista, o Estado tem
exercido o ‘controle
social’ sobre o conjunto da sociedade em favor dos interesses da
classe dominante para garantia do consenso em torno da aceitação da ordem do
capital. Esse controle é realizado através da intervenção do Estado sobre os
conflitos sociais imanentes da reprodução do capital, implementando políticas
sociais para manter a atual ordem, difundindo a ideologia dominante e
interferindo no “cotidiano da vida dos indivíduos, reforçando a internalização
de normas e comportamentos legitimados socialmente” (Iamamoto & Carvalho,
1988, p. 109).
A partir do referencial teórico do
marxista italiano, Gramsci, em que não existe uma oposição entre Estado e sociedade civil, mas uma
relação orgânica, pois a oposição real se dá entre as classes sociais, pode-se
inferir que o ‘controle
social’ acontece na disputa entre essas classes pela hegemonia na sociedade civil e no
Estado. Somente a devida análise da correlação de forças entre as mesmas, em
cada momento histórico, é que vai avaliar que classe obtém o ‘controle
social’ sobre o conjunto da sociedade. Assim, o ‘controle
social’ é contraditório – ora é de uma classe, ora é de outra – e
está balizado pela referida correlação de forças.
Na perspectiva das classes subalternas,
o ‘controle
social’ deve se dar no sentido de estas formarem cada vez mais
consensos na sociedade civil em torno
do seu projeto de classe, passando do momento ‘econômico-corporativo’ ao
‘ético-político’, superando a racionalidade capitalista e tornando-se
protagonista da história, efetivando uma ‘reforma intelectual e moral’
vinculada às transformações econômicas. Esta classe deve ter como estratégia o
controle das ações do Estado para que este incorpore seus interesses, na medida
que tem representado predominantemente os interesses da classe dominante. Desta
forma, o ‘controle
social’, na perspectiva das classes subalternas, visa à atuação de
setores organizados na sociedade civil que as
representam na gestão
das políticas públicas no sentido de controlá-las para que atendam, cada vez
mais, às demandas e aos interesses dessas classes.
Neste sentido, o ‘controle
social’ envolve a capacidade que as classes subalternas, em luta na sociedade civil, têm para
interferir na gestão
pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos seus
interesses de classe, tendo em vista a construção de sua hegemonia. A expressão
‘controle
social’ tem sido alvo das discussões e práticas recentes de diversos
segmentos da sociedade como sinônimo de participação social nas políticas públicas. Durante o período
da ditadura militar, o ‘controle
social’ da classe dominante foi exercido através do Estado
autoritário sobre o conjunto da sociedade, por meio de decretos secretos, atos
institucionais e repressão.
Nesse período, a ausência de
interlocução com os setores organizados da sociedade, ou mesmo a proibição da
organização ou expressão dos mesmos foi a forma que a classe dominante
encontrou para exercer o seu domínio promovendo o fortalecimento do capitalismo
na sua forma monopolista. Com o processo de democratização e efervescência
política e o ressurgimento dos movimentos sociais contrários aos governos
autoritários, criou-se um contraponto entre um Estado ditatorial e uma sociedade civil sedenta
por mudanças.
Este contexto caracterizou uma
pseudodicotomia entre Estado e sociedade civil e uma
pseudo-homogeneização desta última como se ela fosse composta unicamente por
setores progressistas, ou pelas classes subalternas. A sociedade civil era
tratada como a condensação dos setores progressistas contra um Estado
autoritário e ditatorial, tornando-se comum falar da necessidade do controle da
sociedade civil sobre o
Estado (Coutinho, 2002).
No período de democratização do país, em
uma conjuntura de mobilização política principalmente na segunda metade da
década de 1980, o debate sobre a participação social voltou
à tona, com uma dimensão de controle de setores organizados na sociedade civil sobre o
Estado. A participação social nas
políticas públicas foi concebida na perspectiva do ‘controle
social’ no sentido de os setores organizados da sociedade
participarem desde as suas formulações – planos, programas e projetos –,
acompanhamento de suas execuções até a definição da alocação de recursos para
que estas atendam aos interesses da coletividade.
A área da saúde foi pioneira neste processo devido à
efervescência política que a caracterizou desde o final da década de 1970 e à
organização do Movimento da Reforma Sanitária que congregou movimentos sociais,
intelectuais e partidos de esquerda na luta contra a ditadura com vistas à
mudança do modelo ‘médico-assistencial privatista’ (Mendes, 1994) para um
sistema nacional de saúde universal, público, participativo, descentralizado e
de qualidade.
A participação no Sistema Único de Saúde (SUS) na perspectiva do ‘controle
social’ foi um dos eixos dos debates da VIII Conferência Nacional de
Saúde, realizada em 1986. Nessa conferência, a participação em saúde é definida
como “o conjunto de intervenções que as diferentes forças sociais realizam para
influenciar a formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas para
o setor saúde” (Machado, 1987, p. 299). O ‘controle
social’ é apontado como um dos princípios alimentadores da
reformulação do sistema nacional de saúde e como via imprescindível para a sua
democratização.
Esta participação foi institucionalizada
na Lei 8.142/90, através das conferências que têm como objetivo avaliar e
propor diretrizes para a política de saúde nas três esferas de governo e
através dos conselhos – instâncias colegiadas de caráter permanente e deliberativo,
com composição paritária entre os representantes dos segmentos dos usuários,
que congregam setores organizados, na sociedade civil e nos
demais segmentos (gestores públicos, filantrópicos e privados e trabalhadores
da saúde), e que objetivam o ‘controle
social’.
Vários autores brasileiros vêm
trabalhando a temática do ‘controle social’
no eixo das políticas sociais. Para Carvalho (1995, p. 8), “controle
social é expressão de uso recente e corresponde a uma moderna
compreensão de relação Estado-sociedade, onde a esta cabe estabelecer práticas
de vigilância e controle sobre aquele”. Valla (1993) inscreveu o ‘controle
social’ dos serviços de saúde em um Estado democrático que vem
passando por mudanças no modo de planejar e gerenciar recursos.
Na mesma direção, Barros (1998) trata o
‘controle
social’ sobre a ação estatal dentro da perspectiva da democratização
dos processos decisórios com vistas à construção da cidadania. Destaca que “ao
longo de décadas, os governos submeteram os objetivos de sua ação aos
interesses particulares de alguns grupos dominantes, sem qualquer compromisso
com o interesse da coletividade” (Barros, 1998, p. 31).
Neste sentido, é que houve a
‘privatização do Estado’. Em contraponto a esta realidade, o autor afirma que a
concepção de gestão
pública do SUS é essencialmente democrática, devendo ser submetida ao controle
da sociedade. Cohn (2000) afirma que o termo ‘controle
social’ vem sendo utilizado para designar a participação da
sociedade prevista na legislação do SUS. Bravo e Souza (2002) fazem uma análise
das quatro posições teóricas e políticas que têm embasado o debate sobre os
conselhos de saúde e o ‘controle
social’. A primeira, baseia-se no aparato teórico de Gramsci, a
segunda na concepção de consenso de Habermas e dos neo-habermasianos que
consideram os conselhos como espaço de formação de consensos, através de
pactuações. A terceira posição teórica é influenciada pela visão estruturalista
althusseriana do marxismo que nega a historicidade e a dimensão objetiva do
real, analisando o Estado e as instituições como aparelhos repressivos da
dominação burguesa. A quarta posição é a representada pela tendência
neoconservadora da política que questiona a democracia participativa,
defendendo, apenas a democracia representativa.
Abreu (1999, p. 61) analisa, a partir da
categoria gramsciana de Estado ampliado (relação orgânica entre sociedade
política e sociedade civil), a
dimensão política dos ‘conselhos de direitos’, e tem como hipótese central que,
com o formato atual, “se identificam muito mais com as estratégias do controle
do capital do que com a luta da classe trabalhadora no sentido da transformação
da correlação das forças, tendo em vista a sua emancipação econômica, política
e social”. Correia (2002) também parte do conceito gramsciano de Estado e
considera o campo das políticas sociais como contraditório, pois, através deste
o Estado controla a sociedade, ao mesmo tempo em que apreende algumas de suas
demandas. O ‘controle
social’ envolve a capacidade que os movimentos sociais organizados
na sociedade civil têm de
interferir na gestão
pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos
interesses da maioria da população.
Consequentemente, implica o ‘controle
social’ sobre o fundo público (Correia, 2003). Observa-se que os
autores supracitados, apesar de utilizarem referenciais teóricos diferentes nas
suas análises, têm em comum tratar o ‘controle
social’ dentro da relação Estado e sociedade civil,
apresentando os conselhos ‘gestores’, ou ‘de gestão
setorial’, ou ‘de direitos’, como instâncias participativas, resultado do
processo de democratização do Estado brasileiro. As três últimas autoras deixam
clara a opção por uma análise desta temática a partir de uma perspectiva
classista, problematizando o ‘controle
social’ dentro das contradições da sociedade de classes.
Além dos conselhos e conferências de
saúde, a população pode recorrer a outros mecanismos de garantia dos direitos
sociais, em especial o direito à saúde, por exemplo, o ministério público, a
comissão de seguridade social e/ou da saúde do Congresso Nacional, das assembleias
legislativas e das câmaras de vereadores, a Promotoria dos Direitos do
Consumidor (Procon), os conselhos profissionais etc. A denúncia através dos
meios de comunicação – rádios, jornais, televisão e internet – também é um forte
instrumento de pressão na defesa dos direitos.
Fonte: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/consoc.html Acesso 26-01-2020, 17:45.
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